ANÁLISE DE “O ANTIGO REGIME E A REVOLUÇÃO”, DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE
Rodrigo Chrystêllo Tavares
A novidade que Tocqueville nos oferece, ainda que o duque d’ Aumale escreva a Cuvillier-Fleury dizendo queria falar-lhe do livro do senhor de Tocqueville, que acabo de ler. Li-o com o maior interesse e tenho-o na maior consideração, embora não partilhe todas as opiniões do autor e não considere como novo tudo o que apresentou como tal, é a de que, ao invés de uma ruptura com o absolutismo e o Antigo Regime, consideração ainda hoje reputada por vera, a revolução não foi além de continuar a obra que tinha vindo a ser executada pelo regime deposto. Não somente as realidades, diga-se figuras e entes, alegadamente geradas pela revolução, existiam de facto e em funcionamento antes da própria revolução, outras estavam em vias de serem conhecidas, como também as variadas práticas da Administração, e a sua forma de organização e de relacionamento com os particulares se complexificaram de 1789 em diante. Afirma o autor no seu prefácio, No século dezoito, a administração já estava, ver-se-á ao ler este livro, muito centralizada, era muito poderosa e tinha uma prodigiosa actividade. (...) Já influía de mil maneiras não somente na conduta geral dos negócios mas também no destino das famílias e na vida privada de cada homem.
Como causas da revolução, apresenta o pensador três grandes realidades da vida económica e social francesa: a desagregação dos estamentos sociais, as utopias dos intelectuais e a liberdade enredada nos antigos cânones da hierarquia social.
A primeira diz respeito à deterioração das posições das ordens da sociedade em geral. O absolutismo real vinha apartando a nobreza do seu papel tradicional no seio das comunidades, quer nos cargos honrosos da Respublica, quer na superintendência dos seus domínios. Uma vez destituídos dos seus tradicionais poderes e laços, muitos nobres foram induzidos numa situação de ócio e de frivolidade, como elucida Chaderlos de Laclos, suspensos em um limbo de apatia, embora granjeados de benesses e de mercês. Submeter ao seu rei a pujante nobreza francesa, que chegara a cunhar moeda e aplicar a justiça na Idade Média havia sido dos objectivos do governo de Luís XIV, de Richelieu e de Mazzarino, na sequência das desordens da Fronda, tendência que se vinha desvelando desde os alvores da centúria precedente. No capítulo II do Livro Segundo (Que a centralização administrativa é uma instituição do antigo regime e não obra da Revolução ou do Império como dizem), refere o autor que ainda no século XVIII existiam ainda governadores de províncias, reminiscências dos antigos senhores feudais, mas como acima ficou dito, tratavam-se de mercês honoríficas, acompanhadas de poder algum.
Nesse tempo, estava a administração confiada aos intendentes e sub-delegados, funcionários encarregues da administração das paróquias e do governo das províncias, assumindo toda a realidade da governaça. Conquanto estes tivessem amplos poderes, diz Tocqueville no mesmo capítulo II (Que a centralização administrativa é uma instituição do antigo regime e não obra da Revolução ou do Império como dizem) que o luzimento e a estimação com que se via a nobreza, já então uma memória na vida das paróquias, encobria de facto os poderes dos intendentes.
Em suma, a nobreza era encarregada dos negócios superiores de Estado, dos exércitos, da magistratura. Neste período, a venalidade de cargos e ofícios será quiçá um dos traços mais característicos. Alguns postos, a minoria, como este do intendente, por exemplo, não eram passíveis de serem ocupados em virtude de direito de nascimento, eleição ou compra, mas por designação do Conselho de Rei. Em Portugal, permitiu-se até às revoluções liberais a propriedade de ofícios, como os de contador ou escrivão, bem como nos cargos de maior prestígio militar, como o de captião-mor ou de sargento-mor das Ordenanças, exercidos pelos estamentos da nobreza de província, ainda que per si conferissem nobreza vitalícia, muitas vezes como remuneração ou por graça de serviços prestados nas conquistas do Brasil ou do Oriente, ou nos campos das armas e letras. Pelo contrário, em França, era possível a aquisição de feudos, que nobilitavam uma família, e cativavam desse modo um estatuto com obrigações e isenções bem delimitadas. A título de exemplo, urge mencionar o nome de um dos excelsos pensadores da Renascença francesa, Montaigne, cujo bisavô, Ramon Eyquem, havia obtido em 1477 o senhorio de Montaigne, na Dordonha, tomando em seguida o seu nome. Ou ainda o caso do feudo de Guemenée, entre tantos outros, arrematado em 1377 por João de Rohan pelo valor de 3 400 sous d'or.
Também no seio do Terceiro Estado, muitos dos camponeses haviam ganho a liberdade e tomado posse da terra, tornando-se pequenos proprietários, transformando-se em livres agentes do mercado. Mesmo na condição de camponeses, podiam negociar, ir e vir onde lhe aprouvesse, ao contrário dos territórios do Sacro-Império e da Prússia, onde em 1788 o camponês não pode deixar a Senhoria e se a deixar podem persegui-lo onde quer que se encontre e reconduzi-lo (Livro Segundo, capítulo I). Vinte anos antes da revolução, já a terra se encontrava retalhada, de modo que uma família se via impossibilitada de viver exclusivamente dela. Necker disse alguns anos mais tarde que havia na França uma imensa quantidade de pequenas propriedades rurais.
Olhemos à situação no Portugal da época. Em 9 de Julho de 1783, uma nova lei pretendia regular esta problemática, cuja situação era em tudo semelhante, na qual se dizia Primeiro nos Juízos divisórios se repartem as Propriedades de casa em porções; e os Fundos de Terra por Glebas; de sorte que, deixando um Pai de Famílias quatro ou cinco filhos, repartindo-se em outras tantas partes as referidas Casas e Terras, e continuando-se nos Descendentes destes as mesmas sucessivas subdivisões; o mesmo que no princípio fora uma Casa nobre, uma Quinta, ou um Casal considerável que conservados na sua primitiva integridade, podiam sustentar uma Família com decência, se dilaceraram, aniquilaram e vieram a perder-se até as memórias do que foram. Em face desta realidade, impedia-se na Estremadura a partilha de devesas ou matas na posse de uma só pessoa, permitia-se no Douro a compra e a troca de prédios encravados, estabelecendo-se regras diferentes para as províncias da Estremadura, Entre-Douro-e-Minho, Alentejo e Algarve. Conclui Tocqueville ser um erro comum pensar que a divisão da propriedade rural data da França e da Revolução: o facto é muito mais antigo.
O apego à terra e a venda acima do justo valor era também uma realidade idêntica nos dois países, aliás expressamente prevista na lei mariana.
Mas se já em 1769 e 1771 havia o senhor D. José decretado a abolição dos vínculos de diminuto rendimento, sob a correcta apreciação dos males que gerava a amortização da terra, será somente na centúria seguinte, na sequência da implantação do regime liberal, pela década de 1850, que em Portugal se iniciará o debate acerca do destino das propriedades vinculadas e da abolição dos morgadios. Recuperando as palavras de Manuel Caetano d’ Athouguia, era a instituição de morgados e capelas vinculadas instituição perniciosa, odiosa (...) contra os interesses do Tesouro da Nação, ente os particulares, contra o comércio e a indústria em geral, contra finalmente a agricultura (...), que sendo uma das maiores fontes de riqueza nacional, fica esta por assim dizer, paralisada e interrompida a sua cultura nas terras vinculadas.
A segunda causa da degenerescência que se achou foi a efabulação que os intelectuais fizeram da realidade. Alertava Tocqueville para a incongruência do seu estatuto, pois se por um lado almejavam, e efectivamente, se relacionavam com as figuras gradas e os círculos superiores da sociedade, não deixavam, por outro, de ver negado o seu ingresso nesses estratos. Caracterizava-os uma realidade, a de serem penseurs de cabinet, ou seja, de críticos da sociedade instituída, mas criadores de uma sociedade utópica, irreal. O seu error fundamentalis, que origina a crítica violenta e virulenta, foi abandonarem a tradição, a religião, e por fim, com a essência da sociedade e da história humanas. Uma vez rompidos esses laços, a sua imaginação não conheceu limites. Inclui Tocqueville nesta categoria de intelligentsia os enciclopedistas e os salonniers, designadamente Rousseau.
A terceira causa que se aponta é a da liberdade. O Antigo Regime concedeu-a a certos indivíduos e às cidades, no entanto, só na medida em que não afectasse os quadros da sociedade instituída, ou seja, debaixo do poder do rei, da Igreja, e da administração burocratizada. Ao mantê-los debaixo desta estrutura não era mais do que subjugá-los a uma liberdade com restrições, destituída das suas caracerísticas fundamentais, como se conhecia na Inglaterra.
A primeira grande suposta conquista da Revolução foi a da centralização administrativa. Mas esta afirmação mostra-se falsa. Tocqueville considera ser a única parte da constituição política do Antigo Regime que sobreviveu à Revolução. O Conselho do Rei, corpo administrativo, era composto por avisadoresdo rei, não mais do que conselheiros, pois caberia sempre o rei as decisões. O Conselho tinha o poder não só de anular os decretos dos tribunais ordinários, mas também lhe eram remetidos os recursos, pois as jurisdições especializadas são da sua competência. Na qualidade de figura suprema da administração, competia-lhe estabelecer as regras gerais que devem orientar os agentes do governo, diríamos os regulamentos. Através deste poder, intervinha em todos os domínios da vida em sociedade.
A gestão dos negócios internos fazia-se exclusivamente por um controlador geral, que chamou até si até à revolução quase toda a supervisão da administração pública. Quanto ao governo das províncias, era exercido por um intendente, escolhido pelo governo entre os membros do Conselho de Rei, sendo simultaneamente administrador e juiz, sendo o agente único, na província, de todas as vontades do governo. Existia também à época um grande agente do governo central para as obras públicas, não mais do que o equivalente do actual corpo da viação e obras. Era também o Conselho que determinava o valor e o modo de recolha dos tributos, fixando a sua repartição por entre as províncias. O recrutamento militar, para a milícia, e as obras públicas eram da competência desta figura; além da temível polícia montada, encarregue da manutenção da paz pública, e subordinada ao governo central. O Conselho podia ainda sobrepor-se aos corpos de justiça. Estes tinham o direito de decretar regulamento de polícia e o Conselho tinha poder de os cassar; mas talvez a tarefa que o ocupava em mais larga escala fosse a emissão de regulamentos gerais aplicáveis a todo o reino. Estes regulamentos, chamados decretos do Conselho, aumentaram à medida que nos aproximamos de 1789. Não houve nenhum sector da economia social ou da economia social ou da organização política que não tenha sido remanejado por decretos do Conselho durante os quarenta anos que antecederam a Revolução, tal era a sua abrangência. O Conselho fazia ainda a distribuição do produto geral dos impostos, com destino aos intendentes das províncias, para desse modo, repartirem pelos fundos de socorro das paróquias; fundava sociedades agrícolas esustentava com muito custo viveiros, intervenções que muito se aproximam da realidade do posterior período do Estado Social. Conclui Tocqueville encontramos decretos ordenando arrancar videiras plantadas, segundo ele (Conselho) em solo ruim, o que mostra até que ponto o governo já passara do papel de soberano ao de tutor (Livro Segundo, capítulo II).
Conexa com a centralização administrativa, surge a tutela administrativa, analisada no capítulo III do livro segundo. Desde Luís XIV, em razão das contingências económicas surgidas das políticas militares na sucessão de Espanha ou contra o Sacro-Império, o rei vendeu as funções municipais, nas quais se incluíam as eleições entretanto abolidas em cada cidade a alguns habitantes o direito de governar à perpetuidade todos os outros. Talvez por esta razão, menos de um século depois, o governo dos municípios tivesse degenerado em oligarquia, na qual algumas famílias conduziam todos os negócios com vistas particulares, longe do olho público e sem serem responsáveis perante ele.
Também em Portugal neste período as elites municipais, diga-se, os vereadores e os almotacés, de um lado, e militares das localidades, capitães-mores, sargentos-mores, e capitães, lideravam as comunidades onde se achavam inseridos, como pequenos senhores feudais, que obtinham esses cargos por privilégio e prémio ou graças ao seu poder económico (...) para depois dominarem as populações usando a ameaça (...). Imagine-se que em 1768 chegou ao Desembargo do Paço uma petição dos lavradores de Matosinhos contra o Cappitam da ordenança daquele Distrito e Julgado de Boussas Manoel da Silva Guimaraez o qual subindo de menor exfera para a dita ocupaçam nella à custa dos dinheiros fazendas e suôres dos pobres se tem constituhido rico, opulento e cruel não só com excandalo notorio, mas tambem com deploravel consternação dos mizeraveis a quem a sorte lhe destinou estarem subordinados à sua Companhia.
As cidades não tinham autonomia para estabelecer tributos ou fazer uso dos excedentes de suas receitas sem que intervenha um decreto do Conselhoprecedido de uma proposta do intendente.Ainda assim, até à revolução, as paróquias rurais governavam-se ainda pelos velhos modelos e costumes medievos, elegendo os funcionários municipais, ainda que fosse necessário um decreto do Conselho para coisas tão simples como o conserto do muro do presbitério que desabava ou do teto da Igreja que o vento abalara. Ao Conselho chegavam todas as questões desde a Bretanha à Lorena. Todas as paróquias, perto ou longe de Paris, tinham de obedecer a esta regra. Vi licenças do Conselho para um gasto de apenas 25 libras. E conclui com uma sublime formulação a actuação do Conselho, a administração tutelava todos os franceses (...) a coisa em si já existia. As funções do Conselho estendiam-se a tantos domínios, que o autor no capítulo VI, no final do terceiro parágrafo, reitera a ideia de que (um) pedido (ao Conselho)só costuma(va) ser atendido após nada menos que dois ou três anos.
Começa o capítulo IV da seguinte forma: Não havia em toda a Europa país algum onde os tribunais ordinários dependessem menos do governo do que em França, mas também não havia nenhum outro em que os tribunais excepcionais fossem tão utilizados, uma realidade que Pereira da Silva designa como paradoxo francês. Avista-se aqui um contencioso privativo em muito anterior à revolução, manifestando-se como uma herança do Antigo Regime, no qual todos os negócios que interessavam ao poder eram convocados perante um tribunal independente, numa clara tentativa de proteger a Administração. A maioria dos negócios litigiosos gerados pela arrecadação de impostos são da competência exclusiva do intendente e do Conselho, o que é sintomático de um verdadeiro contencioso privativo. Mas esta isenção das justiças comuns também se aplicava aos funcionários da administração. Bastava estar ligado à administração por um fio qualquer, por mais ténue que fosse, para nada ter que temer. Um simples capataz de um serviço de viação estava portanto isento das justiças comuns. Um intendente escreve Nunca repetirei o quão nocivo seria para os interesses da administração entregar os seus funcionários às decisões da justiça comum, cujos princípios concordarão com os nossos. O contencioso privativo de que falava Laferrière não será mais do que uma refracção desta realidade.
No capítulo VI, diz Luís XVI tanto abalou a monarquia e apressou a revolução pelas suas novidades e sua energia quanto pelos sues vício e moleza. Um ano antes da revolução, o rei sancionou a reforma administrativa de 1788, criando novas jurisdições e suprimindo outras, situação que gerou grande instabilidade, dada a relativa homogeneidade do sistema a implementar, não exequível se consideramos a relativa heterogeneidade ainda latente (livro terceiro, capítulo VI). Na segunda metade do século XVIII, no domínio do urbanismo e obras públicas, fizeram-se importantes melhoramentos nos caminhos e estradas, imbuídos de espírito racional e retilíneo, procedendo-se à expropriação de terrenos e demolição casas quando estorvassem tais princípios, ainda que desconsiderando as compensações a serem pagas, e que na larga maioria, ficaram para sempre em dívida, testemunho da pouca consideração com que na época eram tidos os proprietários. A construção das 57 barreiras alfandegárias de Paris foi também um marco fundamental. Achará talvez curioso o leitor que a praça da Bastilha que actualmente conhecemos, recuando ao período da Restauração, seja em tudo semelhante ao que já haviam projetado os arquitectos do rei para arrasar a Bastilha e aí fazer construir um novo quarteirão em torno da Place Royale, e que toma hoje o nome da antiga fortaleza. Luís XVI, sendo um rei progressivo e enérgico por um lado, como por exemplo decretando a extinção do Cemitière des Innocents, por outro, toldado pelo seu carácter mole e indolente, imprudentemente aconselhado em alguns casos, como o do apoio aos que no Novo Mundo se rebelaram contra Jorge III, acelerou o despoletar da revolução (livro terceiro, capítulo IV).
Em suma, e como sintetizou J.P.Mayer, tudo quanto marcou a actuação administrativa, tudo se faz(ia) pelo Conselho do Rei, o intendente ou o sub-delegado. Também nas palavras Pereira da Silva, se a Revolução destruiu tudo, começou também a tudo reconstruir, estabelecendo novas estruturas administrativas, afirmando o reino da lei (...).
Bibliografia
Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, UnB, 4ª edição, 1997.
Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 2ª edição, 2016.
Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes, INCM, 2003.
Manuel Caetano César de Freitas e Athouguia, Opúsculo e Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados e Capelas de bens vinculados &&, 1850.
Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado Prático de Morgados, 4ª edição, 1841.
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Fernando Pereira Marques, Exército e Sociedade em Portugal, Alfa, 1990.
André Ribeiro Coutinho, O capitão de infantaria portuguez, I e II, Lisboa, 1752
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