domingo, 11 de novembro de 2018

A 1ª proposta do Pacto de Justiça


Em Janeiro de 2018 foi apresentado o pacto de justiça entre juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, solicitadores e funcionários judiciários, para a melhoria do sistema de justiça, com mais de 80 propostas, denominado por Acordos para o Sistema de Justiça.  
A primeira proposta deste Pacto versa sobre a unificação de jurisdições, ou seja, sobre a unificação da jurisdição comum com a administrativa e fiscal, criando uma ordem única de tribunais, um único Supremo Tribunal e um único Conselho Superior da Magistratura Judicial.
No entanto, esta proposta é objecto de muita resistência por muitos, que continuam a defender a manutenção de uma dualidade de jurisdições.
Para conseguir tomar uma posição sobre esta problemática é preciso perceber o sentido da existência de uma dualidade de jurisdições, que perdura até aos dias de hoje. Para tal é útil procurar as razões históricas da jurisdição administrativa e a evolução constitucional e legal da organização dos tribunais em Portugal.
Após a revolução francesa de 1789, o poder revolucionário optou por manter o sistema do administrador-juiz, que se traduzia na atribuição de poderes de julgamento à Administração e na proibição dos tribunais conhecerem os litígios decorrentes da actividade administrativa. Havia uma confusão entre poder judicial e executivo, que se justificava com base no novo principio de organização do estado, o Principio da Separação de poderes - julgar a administração ainda é administrar.
Em 1799, surge o Conselho de Estado, um órgão administrativo consultivo e de julgamento, responsável por emitir pareceres que acabariam sempre por ser sujeitos à homologação da Administração, o que significava que a última palavra continuava a pertencer ao poder executivo. Mas em 1872 esta figura da homologação desapareceu através da criação do sistema de justiça delegada, que se caracterizava pela delegação, no Conselho de Estado, da competência para decidir os litígios. Este modelo de justiça delegada no Conselho de Estado, que a partir de 1889 começou a mudar e a criar condições para se tornar autónomo através do recrutamento dos magistrados e da alteração do seu estatuto, foi adoptado por vários países, nomeadamente por Portugal.
Com efeito, o modelo francês de justiça administrativa inspirou diretamente o modelo que  Mouzinho da Silveira e os seus sucessores políticos procuraram desenvolver em Portugal - a criação de um Estado administrativo, em que a Administração, além de ter o seu próprio direito, deveria também ter o seu próprio juíz.
Mais tarde, e durante o Estado Novo, Marcello Caetano, um insigne professor de Direito administrativo que viria a ser Presidente do Conselho de Ministros, defendia a mesma ideia, isto é, de que os litígios que envolvessem a administração não deveriam ser julgados pelos tribunais judiciais, mas sim no âmbito da administração, porque não podia sujeitar-se esta a um poder de imposição de uma certa actuação por parte dos tribunais
Assim, até à revolução do 25 de abril, os litígios entre a Administração e os particulares eram julgados num ambiente administrativo, ou seja, por um juiz que não era verdadeiramente um terceiro, independente em relação a ela, como decorrência da ideia de que o poder judicial não podia sobrepor-se à Administração.
No entanto a partir de 1976 a jurisdição administrativa e a Administração foram definitivamente separadas através da chamada jurisdicionalização dos tribunais administrativos, cuja inserção no poder judicial, a par com os tribunais judiciais, passou a estar constitucionalmente garantida
O legislador constitucional de 1976, querendo embora assegurar o controlo da administração e da actividade administrativa por verdadeiros tribunais, independentes, não quis romper com a  dualidade de jurisdições. E na revisão constitucional de 1989, o legislador voltou a manter a separação das jurisdições.
Importa por isso indagar das razões pelas quais tal terá assim sucedido, parecendo certo que tal dualidade não poderá ter resultado de mera inércia ou tradição, num período, revolucionário, em que tudo se discutia e em que a ruptura com o passado e com as suas instituições era o  indiscutível ponto de partida na nova ordem constitucional.
Para o professor Afonso Queiró uma “necessidade de assegurar a separação de poderes entregando o julgamento das questões de direito administrativo a quem possa ter um conhecimento exacto deste direito, do funcionamento dos serviços públicos e das conveniências práticas: os tribunais judiciais especializados no cível e no penal, não possuem esta aptidão e estão mal preparados para o exercício de uma função pretoriana que é inevitável no julgamento daquele tipo de questões, dado que o direito administrativo é cheio de lacunas”
A principal argumentação dos defensores desta dualidade jurisdições baseia-se no princípio da especialização, que será mais fácil concretizar a justiça administrativa para um juiz especializado no direito administrativo, conhecedor dos seus princípios e das suas realidades, do que para um juiz ordinário especializado em princípios e realidades de outros ramos que se revelam muito diferentes. Um julgador universal, tem a dificuldade natural de conhecer com igual familiaridade os vários e distintos sectores do direito. o julgador que se especialize numa determinada área do direito está em melhores condições de realizar uma melhor justiça. Por esta razão a organização dos tribunais deve atender às diferenças entre as várias matérias e tentar individualizá-las, de forma a que a cada uma corresponda uma jurisdição privativa, um corpo de magistrados idóneo, competente e dedicado apenas àquela concreta área, sem se distrair com matérias outras.
Efectivamente, e não obstante a evolução que se tem verificado, uma clara diferença de natureza da justiça administrativa e da justiça ordinária. Até 2004, os particulares apenas podiam recorrer aos tribunais administrativos para desencadear o controlo da legalidade dos actos através da sua anulação. Este paradigma tem vindo a alterar-se desde então. Apesar de uma aproximação crescente entre o direito administrativo e o direito privado nos dias de hoje, que se manifesta por uma diminuição da utilização de formas autoritárias de decisão e ação, e uma utilização cada vez maior de instrumentos jurídico-privados, a Administração continua a definir e a prosseguir o interesse público que prevalece sobre direitos e posições jurídicas individuais, privados, e exige meios, conhecimento e experiência (atitude mental) diferentes dos utilizados pelos tribunais judiciais, no julgamento de litígios entre partes iguais.
A Administração é assim uma parte especial em qualquer litígio e a actividade administrativa é regida por um direito também especial, continuando a dispor de prerrogativas de autoridade, nomeadamente, do privilégio de execução prévia. Parece por isso fazer sentido que tenha também um juíz especial.
Deste modo, e sem ferir o princípio da separação de poderes, princípio estruturante das democracias modernas, assegura-se o controlo da administração e da actividade administrativa e dos direitos dos particulares em relação às mesmas por verdadeiros tribunais, especiais. De outro modo o poder judicial ficaria colocado numa posição de supremacia perante a Administração, o que poderia conduzir a abusos de poder por parte daquele, com riscos de criação de um Estado dirigido pelos Tribunais. Um conflito envolvendo a Administração acabaria por redundar num conflito entre o poder executivo e o poder judicial no seu conjunto



Inês Camara Pestana - 140115086

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