domingo, 4 de novembro de 2018

Do objetivismo ao subjetivismo do objeto do processo



O objeto do processo define-se como a questão-chave de qualquer processo, uma vez que limita o que pode ser julgado, razão pela qual é uma questão central em qualquer domínio processual.


No processo administrativo, tal como no processo civil, o objeto divide-se em duas realidades:
  • o pedido, que é o efeito jurídico pretendido pelo autor, aquilo que o particular solicita ao juiz e que quer que seja resolvido;
  • a causa de pedir, que são os factos concretos que servem de fundamento a esse efeito jurídico pretendido, a lesão que o particular sofreu na sua esfera jurídica, o direito que alega que foi violado em determinadas condições.  

Esta dupla realidade do objeto é o que está em causa nas diferentes teorias processuais: o que estas fazem é dar um maior ou menor peso a cada um dos elementos. 
Ora, do ponto de vista da teoria geral, encontramos as correntes substancialistas e as correntes processualistas. As correntes substancialistas valorizam o processo, defendendo que aquilo que importa quando se analisa o mesmo são os factos enquanto enquadrados num pedido, ou seja, o modo como esses são qualificados e apresentados a juízo. Contrariamente, as correntes processualistas valorizam a causa do pedido, defendendo que o objeto do processo deve corresponder aos factos trazidos a juízo independentemente das qualificações. O que está em causa é uma apresentação dos factos no quadro de todas as possíveis e imaginárias qualificações, o que introduz um alargamento do objeto do processo.


No âmbito do Contencioso Administrativo, podemos encontrar uma realidade dicotómica no modo como se concebe o objeto do processo.
Em conformidade com as construções substancialistas, fala-se no pedido do particular e caracteriza-se o processo na lógica desse mesmo pedido. A teoria clássica e objetivista entendia o pedido como o recurso a um ato, à anulação de um ato administrativo. Esta ideia estava intimamente ligada aos traumas da infância difícil com Contencioso Administrativo, isto porque o pedido que era feito ao juiz estava limitado à anulação e confundia--se este pedido de anulação com o objeto do processo. Comparando com o processo civil, significava reduzir de forma abismal a realidade de qualificação do pedido e possibilidade e haver vários pedidos. Desta forma, a lógica tradicional do Contencioso Administrativo era a de um processo objetivo em que o que estava em causa era uma atuação administrativa independentemente dos sujeitos que a tinham praticado, razão pela qual se dizia que o juiz, perante um pedido de anulação de um ato, limitar-se-ia a verificar a conformidade desse ato administrativo com a lei, havendo apenas um controlo objetivo da legalidade e do interesse publico. Não se falava da existência de direitos, não se integrava os direitos subjetivos dos particular no conteúdo do objeto do processo, porque, na lógica objetivista, não eram objeto do processo. 
  • Depois da reforma, o legislador português alterou radicalmente este “estado de coisas”, no quadro do modelo constitucional. No quadro do Contencioso Administrativo, não fazia sentido que o pedido fosse apenas de anulação. Em relação a qualquer ato, todos os tipos de pretensões passaram a poder ser deduzidos perante os tribunais administrativos, desde que se inscrevessem no âmbito da jurisdição destes tribunais (art. 2º, nº1 do CPTA). O CPTA consagra também, no seu artigo 4º, o princípio da livre cumulação de pedidos, significando que diferentes pretensões são suscetíveis de serem pedidas em conjunto, desde que exista uma conexão entre elas, e estas correspondam à afirmação dos direitos dos particulares. Passou a haver a possibilidade de serem suscitados e cumuláveis todos os pedidos, podendo dizer-se que ocorreu um alargamento do objeto do processo e introduziu-se uma ponderação similar aquela que existe no processo civil. 
No entanto, analisando todo o caminho percorrido pelo Contencioso Administrativo até chegar à afirmação dos direitos dos particulares e ao alargamento do objeto do processo, podemos identificar que o legislador, do ponto de vista psicanalítico, cometeu alguns “atos falhados”. É o caso do artigo 50º CPTA que mantém a lógica tradicional de dizer que o objeto da ação de impugnação é a anulação ou declaração de nulidade dos atos administrativos. Isto é algo que é implicitamente negado pelo próprio código, quando diz que são sempre cumuláveis todos os pedidos. Além disso, a anulação do ato é já de carácter material. Portanto, o legislador confunde pedido imediato com pedido.

A doutrina sempre valorizou a causa de pedir, sendo que a doutrina objetivista apresentava uma construção que tinha uma certa dimensão social. Aquilo que se dizia era que o que estávamos perante uma causa de pedir no quadro de uma determinada relação jurídica, e isso levava a que o juiz só tinha de analisar os vícios e não a dimensão da legalidadeisto contradizia os pressupostos objetivistas. Até aos anos 60, no quadro da lógica objetivista, embora se continuasse a firmar a natureza objetiva do Contencioso Administrativo, o modo como se concebia a causa de pedir era subjetivista, porque o que se dizia era que o juiz só tinha de verificar o que fosse alegado pelas partes. Havia, portanto, uma construção contraditória. 
  • Com medo do caso julgado e que os juízes não pudessem analisar todas as invalidadas, cria-se então a realidade subjetivista da causa de pedir. O Professor Vasco Pereira da Silva, num tom peculiarmente irónico, diz que "o legislador português confessava-se objetivista mas não era lá muito praticante", pois em matéria de causa de pedir tinha uma conceção subjetivista. Apesar de considerar este subjetivismo limitado que partia da analise dos vícios do ato que tinham sido alegados pelo particular, o Professor defende que, em todo o caso, era uma contradição com a lógica objetivista que estava em causa.
Depois da reforma, temos um legislador (art.95º e ss, CPTA) a procurar alargar o domínio da causa de pedir sem cair na ideia de que o juiz apreciaria a legalidade independentemente do que fosse alegado pelas partes. Pelo contrario, o legislador procura admitir a flexibilidade no sentido de que o juiz pudesse apreciar causas de pedir implícitas, circunstâncias, factos, que não tinham sido diretamente alegadas pelo particular. Para o Professor Vasco Pereira da Silva faz sentido que haja uma intervenção do juiz quando estejamos perante factos que não foram alegados pelas partes, mas que são presumidos em virtude do que foi alegado.

Para concluir, o sistema de contencioso Administrativo em Portugal, no que respeita ao objeto do processo, foi-se gradualmente afastando da teoria objetivista, aproximando-se cada vez mais de uma realidade jurídico-subjetiva. 



Inês Espírito Santo nº 149118701


BIBLIOGRAFIA: 
Aulas lecionadas pelo Professor Vasco Pereira da Silva, no âmbito da cadeira de Contencioso Administrativo;
Silva, Vasco Pereira da. "O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as ações no novo processo administrativo." 2ª edição, Almeida, Lisboa (2009) 

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