UMA LEITURA HETERODOXA DO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES EM FRANÇA - O CONTRIBUTO DE CHARLES DE SECONDAT
Rodrigo Chrystêllo Tavares
Um leitor curioso que folheie as Oeuvres de Montesquieu, impressas em Lyon, chez Amable Leroy, em 1805, achará no seu tomo primeiro, livro XI, capítulo VI, De La Constitution d’Angleterre, linha décima, Mais les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés, qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur; uma ordenação de palavras que expressa um cânone ocidental. Na primeira edição, contém o frontispício uma composição fitomórfica onde se inscreve o mote latino De rectu Decus, não mais que l’honneur par la droiture ou l’honneur par la rectitude, uma acertada divisa que tão bem exprime o espírito do autor.
Primeiramente publicada em Genebra, no ano de 1748, sob anonimato, a obra foi censurada pela Igreja, e inscrita no Index librorum prohibitorum em 1751, por exaltar os costumes pagãos dos Antigos. A polémica em torna desta obra, que viria a ser conhecida como a Querelle de L’Esprit des Lois envolveria não só clérigos de nomeada, como o abade de La Porte, que considerou l’ouvrage desordoné et obscur, mas também parte da nobreza mais esclarecida, como o duque de Nivers, membro da Académie Française, e sobrinho-bisneto do cardeal Mazarino. Em suma, les adversaires de L’Esprit des Lois sont les mêmes que ceux de l’ Encyclopédie.
Será o livro que toma o título De la Constitution d’Angleterre o objecto de análise deste percurso, que se não pode alhear às considerações especiais do regime inglês, por ser aquele em que o autor consagra a sua teoria da divisão de poderes, em suma, quais os tipos de poderes, como se fazia sua repartição e nomeação. Por fim, o autor tece considerações em torno do tema da liberdade, onde de situa no sistema que o autor traça, e como se pode exercitar.
Ainda que estudando a realidade inglesa, e debruçando-se sobre Dois Tratados sobre o Governo, de John Locke, identificam-se alguns erros na leitura que Montesquieu faz. O entendimento posterior que se fez veio deformar mais ainda essa imagem, como que em um complexo jogo de espelhos, de forma que a interpretação francesa do princípio da separação havia sido em primeiro lugar, uma tentativa de enunciação daquela que seria a interpretação inglesa. Sendo a figura do Estado à época desconhecida dos ingleses, a subsunção do modelo que Montesquieu faz à logica do Estado acabou por condicionar definitivamente o pensamento francês.
Principia o magistrado da Assembleia de Bordéus pela enunciação dos três tipos de poderes: um, o poder legislativo, através do qual se criam as ordenações e as leis, que chegará a considerar o mais excelso; outro, o poder executor das coisas que dependem do direito dos povos, onde se inclui o envio e apresentação de embaixadas, negociação da guerra e paz, e da segurança do Estado; por fim, outro poder executor, das coisas que dependem do direito civil, cuja atribuição primeira é a punição dos crimes ou o julgamento dos diferendos dos particulares, a aplicação, à qual se pode chamar poder de julgar.
A Sublime Porta
Daqui se retira uma primeira consequência, central para a verdadeira percepção do maior trauma vinculado na Revolução, consagrado pelo decreto usurpador de 16 de Fruitor do ano III. Os diferendos entre os particulares e a autoridade não se podiam enquadrar no poder de julgar, portanto, eram litigados no seio da Administração. Será esta realidade o berço do juiz doméstico de que fala Mario Nigro, o privilégio de foro de que gozou a Administração.
Na verdade, será pela identificação da magistratura com o corpo da nobreza, que os revolucionários se apressaram a reconhecer a prestimosa colaboração dos magistrados no derrube do absolutismo, cuja influência era exercida por múltiplos poderes, um verdadeiro e anunciado governo dos juízes quando o Antigo Regime vinha já fenecendo. Uma vez que os magistrados seriam a priori opositores do novo status quo, e que enfim pudessem constituir uma força de perturbação do curso da revolução, anunciaram os revolucionários que A [sic]nossa magistratura estava constituída, precisamente, para resistir ao despotismo, mas este já não existirá de ora em diante. Esta forma de magistratura não é, pois, necessária.
Para Charles de Secondat, na classificação que fez dos sistemas políticos, que ocupa largas páginas da sua magnum opus, para a qual se havia inspirado nos cânones da Antiguidade, constituiria esta promiscuidade uma incursão nos domínios do despotismo, o menos preferível dos três regimes, o qual, existindo total confusão de poderes, era caracterizado pelo terror dos súbditos face ao seu soberano, um regime do qual Maquiavel havia feito larga apologia em O Princípe.
Considerava o autor ser em tudo conveniente que o poder de julgar se não confundisse com o poder legislativo nem com o executor, porquanto se receasse que o corpo encarregue de fazer as ditas leis iníquas as pudesse fazer aplicar coercivamente e com grande violência. Da mesma guisa não fosse desejável a união entre o poder de julgar e os poderes de executar ou de legislar, pois no primeiro caso, o juiz teria a força de um opressor; no segundo caso, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário.
Na maioria dos reinos da Europa, diz, em alusão ao despotismo então em voga, laboriosamente fundido e refundido, que teve os seus alvores na Prússia, e daí para os territórios do czar e do sacro-imperador, o governo é moderado porque o príncipeexerce os poderes legislativo e executor, e deixa aos seus súbditos o exercício do terceiro.Assim não sucedia na Sublime Porta, onde o governo se achava submetido à vontade do sultão, reina(ndo)um horrível despotismo ou na Cataio dos nautas intimoratos, o Império do Meio dos mandarins, o despotismo da Ásia, onde os imperadores eram reputados filhos do céu. Algumas linhas mais abaixo diz (...) os príncipes que quiseram tornar-se despóticos começaram sempre por reunir na sua pessoa todas as magistraturas, tal como em Roma, onde se conhecia a figura do dictator, eleito entre os cônsules, a quem era confiado um imperio magnum, podendo fazer-se acompanhar por 24 lictores, sendo as magistraturas suspensas por um período de seis meses.
Ainda que os monarcas esclarecidos se arrogassem à concentração total do poder, os métodos tirânicos, como os que Nicolau Maquiavel preceitua ao príncipe, e que dedicou a César Borgia, como se mostra pela crítica de Frederico II da Prússia, o mesmo que mandou levantar Sans-Souci, o qual imbuído dos ideais iluministas, compôs Anti-Maquiavel, publicado em Bruxelas, sob o nome de Voltaire, em 1740, quebrando ponto por ponto o receituário do tratadista florentino, foram sempre condenáveis.
A ideia que o espírito de Tocqueville finamente tece acerca da ruína a que se achava votada a antiga sociedade francesa, evidencia-se pelas suas semelhanças com um passo que Montesquieu trata no título VII (Fatale conséquence du luxe à la Chine), que diz On voit dans l'histoire de la Chine qu'elle a eu vingt-deux dynasties qui se sont succédé; c'est-à-dire qu'elle a éprouvé vingt-deux révolutions générales, sans compter une infinité de particulières. Les trois premières dynasties durèrent assez longtemps, parce qu'elles furent sagement gouvernées, et que l'empire était moins étendu qu'il ne le fut depuis. Mais on peut dire en général que toutes ces dynasties commencèrent assez bien. La vertu, l'attention, la vigilance sont nécessaires à la Chine; elles y étaient dans le commencement des dynasties, et elles manquaient à la fin.
Analisando a cena social francesa, é o mesmo estado de anomia que perpassa por todos os estados, um desvio entre o papel tradicional, e o novo arquétipo que se vinha anunciando, como se já mencionou. Um governo tirânico e pouco temperado, isento de liberdade para os seus súbditos, justificaria uma revolução, como a que de facto veio a ocorrer.
Quanto ao poder de julgar, considera ser uma função intermitente, para formar um tribunal que dura enquanto a necessidade o solicitar, para que ao não estar associado nem a um certo estado nem a uma certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Entramos aqui na première antichambre da sua mais afamada consideração.
Considerando que os cargos da magistratura vinham sendo ocupados por membros recrutados de entre o superior estrato da sociedade, a aristocracia de toga, ligada ao funcionalismo público, ou latifundiária de província, podendo também estes enveredar por posições no exército, ambas categorias nas quais M. de Montesquieu se incluía, bem como seu avô, M. Gaston de Secondat, barão de Montesquieu, président à mortier do parlamento de Bordéus, as lunetas através quais olha à realidade, como as que Espinoza polia, são aquelas de “político” e não de “cientista”, apropriadas da gramática de Pereira da Silva.
Ainda assim, os julgamentos deveriam ser fixos, ou seja, de forma que nunca fossem senão um texto preciso da lei, e assim entramos na deuxième antichambre. O julgador deveria ser da condição do julgado, para que este não possa imaginar que caiu nas mãos de gente inclinada a fazer-lhe violência.
Quanto ao poder legislativo, o povo tem de possuir no seu conjunto o poder legislativo, através dos seus representantes, já dizia um heleno de nome Platão, pois não somente nos pequenos Estados todos os cidadãos podem participar no regimento, como o povo não é capaz de discutir os assuntos. E segue com uma crítica à democracia. Todos os cidadãos deveriam poder escolher os seus representantes, exceptuando os que estão num tal estado de baixeza que se considera não terem vontade própria, ou seja, não reconhecendo direito a todos, como aliás viria a ser mister no período liberal, quando o voto era atribuído somente a quem tivesse determinado nível de rendimento, o voto censitário, ou ainda a quem possuísse certo nível de instrução, o capacitário. Lembre-se que Platão, na sua mais reputada obra, capítulo Livro VIII, consagra a sua teoria das formas de governo, condenando a democracia, uma forma degenerada da república, pois ao invés de liberdade existe libertinagem, onde a correcta ordem das coisas se inverte, onde os asnos tomam a liberdade de ferir os transeuntes nas ruas.
Seria então o poder legislativo entregue ao corpo de nobres, pois Há [sic] sempre num Estado pessoas distintas pelo nascimento; e ao corpo representante do povo, consideração semelhante aos antigos Estados Gerais, ultimamente convocados em 1614. Perante a constatação de que o poder de julgar é de algum modo nulo, o corpo dos nobres seria muito apropriado para temperar as empresas dos restantes dois, os poderes executores, ambos reunidos na majestade do monarca.
O corpo dos nobres, hereditário, tal como a Câmara dos Pares do constitucionalismo português, onde tomavam assento os titulares nobres e religiosos, tomaria parte na legislação através do poder de impedir, ou seja, de anular uma decisão ordenada por outrem, a tribunitia potestas e o ius intersecciones, o direito de veto a qualquer magistrado, bem como a summa coercendi potestas, a capacidade de aplicar a força para impor o respeito pelas suas decisões, poderes de que gozava o tribuno da plebe em Roma.
O poder executor, depositado aos pés do soberano, teria direito de frear as iniciativas do corpo legislativo, para que este se não venha a tornar despótico. Mas, sendo de esperar o contrário, o poder legislativo não tem direito a frear o poder executor, pois a este é necessária uma actuação rápida, constituição oposta à do corpo legislativo. Tem este no entanto notável poder de apreciar a forma como as medidas que adoptou foram executadas pelo poder executor, e esta é a vantagem que este governo tem sobre o de Creta e o da Lacedemónia.Por entre os exemplos eruditos e ilustrados dos éforos e dos amymones, o autor critica mais uma vez o absolutismo real, regime que, tal como os autores da Enciclopédia pretendia derrubar, instaurandoem França iniciado sob Luís XIII, com a regência do cardeal de Richelieu. Teorizado por Bossuet, e com raízes sob os Valois, o absolutismo teve a sua supernova no governo de Luís XIV, l’enfant Dieudonné, o Rei-Sol, que recebia o poder de Deus para governar os homens, e só àquele teria de se prestar a merecimentos.
Mas atalha o insigne autor, apesar de em geral o poder de julgar não dever estar unido a qualquer parte do poder legislativo, está sujeito a excepções.
A primeira é o julgamento dos nobres, expostos à inveja; e se fossem julgados pelo povo poderiam ficar em perigo, e não gozariam do privilégio que o menor dos cidadãos possui, num Estado livre, de ser julgado pelos seus pares. E em seguida, a sua retumbante afirmação
Poderia acontecer que a lei, que é simultaneamente clarividente e cega, fosse em certos casos demasiado rigorosa. Mas os juízes da nação não são, como dissemos, senão a boca que pronuncia as palavras das leis; são seres inanimados que não podem moderar nem a sua força nem o seu rigor. Portanto, é a parte do corpo legislativo que, como acabámos de dizer, constituiu um tribunal necessário noutra ocasião, que também o constitui nestas circunstâncias; cabe à sua autoridade suprema moderar a lei em favor da própria lei, sentenciando com menos rigor do que ela.
Caberia então à camara superior do poder de legislar, o julgamento de seus pares, diga-se, pessoas da mesma condição, cabendo-lhe também moderar a lei em favor dela própria.A ideia daquela magistral enunciação, ao contrário do que soía fazer-se, não é a de aplicar homogeneamente a toda a escala dos tribunais. Como entende António Ulisses Cortês, tendo no olhar o outro lado da Mancha, em abalizadas considerações, quando Montesquieu afirma que os juízes são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, referia-se somente aos juízes dos tribunais de primeira instância, pois relativamente à Câmara dos Lordes, então Supremo Tribunal, admitia-se que interpretassem, mitigassem e moldassem o sentido da lei.
A segunda excepção coloca-se quando algum cidadão nos assuntos públicos violasse os direitos do povo (...) e os magistrados (...) não conseguissem ou não quisessem punir. Em tais circunstâncias, caberia ao corpo de nobres a apreciação da causa, mediante acusação do corpo legislativo do povo, pois aqueles não têm nem os mesmos interesses, nem as mesmas paixões, assegurando-se assim um julgamento justo.
Por fim, quanto ao poder executor, que cabe ao príncipe, deve tomar parte na legislação através da sua faculdade de impedir; (...) no entanto, se o monarca tomasse parte na legislação através da faculdade de estatuir, ou seja, de ordenar por si mesmo ou corrigir o ordenado por outrem, deixaria de haver liberdade, mas podia ter e devia usar do poder de impedir, para se defender, pois se Roma caiu, foi porque o Senado (...) e os magistrados (...) não tinham como o povo, a faculdade de impedir. E assim retomamos os governos despóticos que se espraiavam pelo território continental.
Esplêndida síntese é aquela que diz Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais cidadãos, ou dos nobres, ou do povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou os diferendos dos particulares, sendo daqui consequência necessária o entendimento que houve durante o liberalismo, o eufemístico entendimento francês da separação de poderes, como no-lo confirma Gilles Lebreton.
Será a partir da justa separação de poderes, expressão aliás que o autor nunca assim textualmente formulou, diga-se então, será a partir da justa complementaridade entre os poderes, da lógica dos freios e contra-pesos, portanto da recusa de um poder total, que surge o debate acerca da liberdade de que os sujeitos gozam vivendo no sistema repartido, e mutuamente controlado, pois o objectivo último desta constituição seria a preservação da liberdade, tema que se tratará proximamente. Diz Charles de Sencodat no capítulo III do mesmo livro La liberté est le droit de faire tout ce que les lois parmettent; et si um citoyen pouvait faire ce que’elles defendente, il n’aurait plus de liberté, parce que les autres auraient tout de même ce pouvoir, eesta afirmação presta-se a considerações e comparações com o que Tocqueville haveria de sintetizar. No capítulo VI diz ainda La liberté politique dans um citoyen est cette tranquilité d’esprit qui provient de l’opinion que chaqun a de as sûreté; et pour qu’on ait cette liberte, il faut que le gouvernement soit tel qu’um cityoen ne puisse pas craindre um citoyen.
Termina, no estilo do Padre António Vieira ou de Cosme Ruggieri, com um vaticínio. Tal como todas as coisas humanas têm um fim, também o Estado de que falámos perderá a sua liberdade; perecerá. Roma, Lacedemónia e Cartago certamente que pereceram.
Bibliografia
Montesquieu, De l’Esprit des Lois, Gallimard, 1995.
Montesquieu, Do Espírito das Leis, Edições 70, 2011.
Oeuvres de Montesquieu, chez Amable Leroy, 1805, tt.º I e II.
Dictionnaire de Montesquieu, entradas Angleterre, Querelle de L’Esprit des Lois.
Diogo Freitas do Amaral, História das Ideias Políticas, Almedina, 2012.
Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998.
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009.
Nuno Espinosa Gomes da Silva, Lições de História do Direito Romano, 2011.
Abbé Grosier, Histoire Génerale de la Chine ou Annales de cet Empire, 1773, tt.º VII
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