sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A Esquizofrenia da Ação Administrativa

O legislador pôs termo a uma esquizofrenia que existia desde 2004, que levava a distinguir entre ação comum e ação especial. Essa esquizofrenia desapareceu e esta distinção não fazia qualquer sentido porque se misturavam critérios substantivos das formas de atuação, utilizados antes da Reforma de 2015 — tudo o que dissesse respeito a atos e regulamentos cabia na ação especial, tudo o que correspondesse a contratos administrativos ou relações materiais cabia na ação comum. Ora, esta distinção não faz sentido porque não há ações comuns e especiais porque em qualquer ação todos os pedidos são possíveis. O legislador não deveria ter adotado esta lógica esquizofrénica. Mesmo que o legislador tivesse adotado esta distinção, haveria outro problema que se baseava na troca dos nomes, uma vez que o legislador estava a chamar ação especial àquela que era comum e chamava comum àquela que era verdadeiramente especial.

Agora, aparentemente, há uma única ação administrativa (arts. 37º e ss.) em que são suscetíveis de ser tutelados todos os direitos, todos os pedidos podem ser feitos. Portanto, o legislador andou bem porque, não só adotou aquilo que o professor Vasco Pereira da Silva já defendia, como adotou o princípio do contencioso administrativo pleno. Ainda assim, o problema continua a existir porque o legislador não foi coerente, não levou até ao fim a mudança. Apesar da aparência de única ação, estabeleceu sub-ações, parcelares, que são determinadas pela mistura de critérios processuais e substantivos e não apenas processuais. 

Subdivide-se a ação administrativa numa ação de impugnação de atos administrativos, em que se misturam os critérios porque se impugnam só atos e não também contratos e regulamentos. O mesmo na sub-ação que aparece logo a seguir, de condenação na prática de atos devidos (arts. 88º e ss.), em que há um critério processual que é a condenação mas depois a condenação é do ato devido (misturam-se critérios novamente). Se o legislador queria regras especiais deveria ter criado regras especiais para todas as ações. O legislador deveria ter separado aquilo que correspondia a ações de impugnação e regulado as mesmas em conjunto, o mesmo para as ações de condenação e de simples apreciação. Mas não, criou uma trapalhada que são as cinco ações que temos. Existe outra ação que é a de impugnação de normas e condenação à emissão de normas. Por último, nos arts. 77º e ss. aparecem as ações relativas a contratos. Ou seja, sob a aparência de uma ação, o legislador regulou cinco ações através de critérios processuais e de natureza substantiva e, portanto, isto não é a boa técnica legislativa.

É que a propósito de cada uma destas modalidades de ação administrativa (por ex., quanto à impugnação de atos administrativos, arts. 50º e ss.): o objeto da ação é diferente em cada caso. Depois aparece referência aos pedidos, pressupostos processuais (diferentes) e marcha de processo diferenciada. Ou seja, cada uma destas sub-ações é uma verdadeira ação porque têm objeto, pressupostos processuais, poderes do juiz e marchas do processo diferenciadas. Portanto, há uma falsa unificação porque na prática continua lá a distinção. Aliás, aquilo que se criticava não era apenas a dicotomia mas o facto de na ação especial e comum se continuar a adotar o critério misto (substantivo e processual). Na ação especial, o legislador distinguia entre impugnação de atos, condenação de atos, impugnação de normas e condenação de normas; e no domínio da ação comum havia uma sub-ação em matéria de contratos, responsabilidade civil e matéria de operações materiais da Administração (estas duas últimas agora desaparecem). Mas, se virmos bem, algumas destas regras têm especificidades para as ações em matéria de responsabilidade e de alterações administrativas. O que significa que na prática se mantêm aquelas distinções que já criavam verdadeiras ações dentro daquelas duas que antes existiam.

O problema essencial do contencioso administrativo é que durante muitos anos não se pautou por regras processuais mas regras substantivas. O contencioso administrativo é processo. Mas há outra peculiaridade com dimensão psicanalítica que resulta de uma análise através de contas de merceeiro das normas que o legislador fez para cada uma das ações. Regulou coisas novas e coisas conhecidas. As conhecidas tratou com detalhe excessivo; quanto às novas fez apenas um artigo ou dois. Seria normal que se preocupasse mais com os meios processuais novos. Vejamos, em relação à impugnação de atos administrativos — antes havia o recurso de anulação —, aquilo que está em causa é conhecido dos juízes, dos sujeitos administrativo, e por isso não implicaria um cuidado tão grande no tratamento destas matérias. Mas dos arts 50º ao art. 66º tem quinze artigos sobre a matéria. Agora há um meio processual que permite condenar a Administração, a transformação essencial do novo Contencioso Administrativo. Mas o legislador tratou do tema em cinco normas (arts. 66º a 72º). Quanto à impugnação e condenação de normas (arts. 72º a 76º) já era conhecida a impugnação mas a condenação, que é nova, tem apenas um artigo a ela referente. Nas ações relativas à execução de contratos, uma novidade, o legislador foi relativamente sintético mas se pensarmos que esta ação permite ações de simples apreciação, anulação e condenação, justificar-se-ia que o legislador se ocupasse desta realidade com mais cuidado.

Transcrição das aulas teórico-práticas de Contencioso Administrativo,
professor Vasco Pereira da Silva, ano letivo 2018-2019.
Filipa Matos, aluna nº 140114034

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