domingo, 11 de novembro de 2018

O Contencioso Administrativo como um processo de “partes”




O Contencioso Administrativo como um processo de “partes”


 De acordo com a lógica tradicional do modelo francês, o contencioso administrativo não era um processo de partes, isto é, não existiam partes em sentido processual. Este “trauma de infância” levava a que o contencioso administrativo fosse um contencioso de natureza objectiva, destinando-se à verificação da legalidade da actuação administrativa, da mesma forma como na “Idade Média se abria processo a um cadáver”, tal como dizia Maurice Hauriou. O acto administrativo era então a única realidade relevante, girando todo o processo à sua volta: existia uma concepção “actocêntrica” do Direito Administrativo.

 O particular não era considerado um sujeito processual, mas apenas um “administrado”, não lhe sendo reconhecidos direitos subjectivos perante a Administração, pelo que ele era um mero objecto do processo. Assim, o particular não estava presente em juízo para proteger direitos ou interesses próprios, lesados por uma actuação administrativa ilegal, mas sim para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. Por sua vez, a Administração também não era considerada como sujeito processual, devido à promiscuidade existente entre Administração e Justiça - elas tinham a mesma natureza, integravam-se no mesmo poder e prosseguiam o mesmo fim, isto é, a Administração estava presente em juízo para colaborar com o tribunal no estabelecimento da legalidade e do interesse público e não para defender a posição que tinha tomado com a prática do acto administrativo.

 Não sendo o contencioso administrativo um processo de partes e não se querendo abrir o processo a todas as pessoas, era preciso encontrar um critério para se determinar o acesso à justiça. O critério escolhido foi então o da legitimidade, desligado da relação material controvertida. A legitimidade aferia-se em função de um interesse fáctico dos particulares no afastamento do acto administrativo da ordem jurídica, tendo de se tratar de um interesse directo, pessoal e legítimo. Ora, o critério do interesse pessoal e legítimo não se refere apenas à relação processual, ele aponta, sobretudo, para a relação jurídica material, o que deu origem a um paradoxo: por um lado, negava-se que o particular fosse titular de direitos perante a Administração, não indo a juízo tutelar uma pretensão pessoal mas sim colaborar com o juiz na defesa da legalidade e do interesse público; por outro lado, dizia-se que o interesse tinha de ser pessoal e legítimo, o que significa dizer que esse interesse corresponde a um direito subjectivo do particular. Deixou-se então entrar pela janela aquilo a que se tinha fechado a porta.

 A Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou nos seus artigos 20º nº1 e 268º nº4 e 5, o princípio de que o particular é titular de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos nas relações jurídicas administrativas e que, portanto, é considerado como parte no contencioso administrativo e consagrou também, no seu artigo 211º nº3, que o contencioso administrativo integra o poder judicial. Também a Reforma de 1984/85 deu largos passos no sentido da transformação do contencioso administrativo num processo de partes. No entanto, ainda subsistiam disposições processuais atentatórias de uma verdadeira igualdade, nomeadamente continuando a referir-se à Administração como “autoridade recorrida”. Só com a Reforma de 2004 é que o legislador português construiu um contencioso administrativo à imagem e semelhança do modelo constitucional, afastando de forma definitiva os últimos resquícios do modelo objectivista.

 Tornou-se inequívoco que os processos do contencioso administrativo são de partes, tendo o contencioso administrativo passado a ter natureza subjectiva. Como tal, tanto o particular como a Administração são partes que, perante um juiz, defendem as suas posições: no caso do particular, este alega a lesão de um direito seu por parte de uma actuação administrativa; no caso da Administração, ela é chamada a tribunal para explicar as razões subjacentes à sua actuação em concreto.


 Esta mudança reflectiu-se especialmente nas regras sobre a legitimidade, constantes dos artigos 9º e 10º do CPTA: enquanto pressuposto processual relativo aos sujeitos, a legitimidade encontra-se indissociavelmente ligada à qualidade de parte, sendo que a legitimidade serve para chamar a juízo os titulares ou sujeitos da relação material controvertida. Assim, a legitimidade decorre da alegação da posição de parte na relação material controvertida, sendo o critério, agora, o da atribuição da legitimidade na relação processual em razão da alegação de direitos e deveres recíprocos na relação substantiva.

Madalena Costa

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