quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

√ 3 × 95º/2 = acusatório ou inquisitório?


√ 3 × 95º/3 = acusatório ou inquisitório?

Em 2004, o legislador mudou a causa de pedir num bom sentido, que fica agora aberta à realidade substantiva.  
Antes de 2004 seguia-se uma lógica objectivista do processo, que levava a que o foco do processo fosse a legalidade objectiva de um acto. Porém, embora a causa de pedir seja um elemento do processo, ela não era entendida em termos objectivos. A doutrina e a jurisprudência defendiam a teoria das hipóteses de erro, baseada no efeito do caso julgado. A teoria das hipóteses de erro realça que a noção de objecto do processo é decisiva para delimitar o conteúdo do caso julgado. Assim sendo, em vez de se defender que o juiz devia considerar todas as formas de invalidade (mesmo as que não fossem alegadas), esta teoria determina que o objecto do processo não deve ser sem mais a legalidade.  

O objecto do processo era construído pelas alegações dos particulares na causa de pedir, que era qualificada em relação aos vícios dos actos administrativos. Ou seja, o critério não era objectivista como devia ser, era na verdade relacional. Isto era uma contradição.  
Esta posição havia sido construída pelo Professor Marcello Caetano e implicava que o juiz não ia apreciar sem mais a legalidade em razão do que o particular alegava, antes ia apreciar apenas os vícios do acto administrativo tal como tinham sido alegados. Por isso a lei vai conter uma enumeração dos vícios dos actos administrativos.

A partir de 1976, este paradigma mudou. A CRP de 1976 manteve uma última referência dos vícios dos actos, mas a noção desaparece depois com as revisões constitucionais. Deixa de ser obrigatório, muito menos necessário, que sejam alegados quaisquer vícios. A única coisa que o particular vai ter de alegar é o pedido e a causa de pedir. E será em função da alegação se construirá o objecto do processo.  

Enquadrando esta teoria dos vícios dos actos administrativos, esta surge por razões históricas, e demonstrava que os vícios correspondiam a formas de invalidade da actuação da administração. A invalidade era como um bolo envenenado, com venenos diferentes e dependendo de quantas fatias que se comessem (sendo, assim, mais grave ou menos).  
A ilegalidade podia ser orgânica, formal, processual ou material. Bastava verificar-se uma ilegalidade para o acto ser inválido.
O problema era que a enumeração era ilógica e incompleta. E ter de alegar vícios, depois apenas apreciando esses vícios alegados, não permitia apreciar a relação jurídica administrativa.  

Hoje em dia, a sentença proferida em sede do contencioso administrativo deve discutir todas as questões que as partes tragam à causa. O juiz conhece de tudo o que tenha sido alegado, mas apenas o que tenha sido alegado, o que é contraditório. Contudo, a novidade do contencioso é demonstrada pelo artigo 95º, número 1, que dispõe que a sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.

Porém, há uma pequena discussão entre os professores Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida acerca da interpretação correcta a dar ao artigo 95º. A questão prende-se com saber se a formulação geral do número 1 do artigo 95º foi ou não excepcionada pela formulação do número 2 do mesmo artigo.
Antes, no artigo 95º, número 1, lia-se “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, (…)”. Esta formulação podia conduzir a que se considerasse que o que vinha disposto no número 2 do artigo era uma excepção ao número 1. O que o número 2 do artigo 95º determinava era que o juiz se devia pronunciar sobre todas as causas alegadas, excepto quando não dispusesses dos elementos essenciais para o efeito, assim como devia identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tivessem sido alegadas
O professor Mário Aroso de Almeida defendia que esta regra introduzia uma dimensão inquisitória ao processo administrativo e que o juiz podia trazer factos novos para o processo. Por sua vez, o professor Vasco Pereira da Silva não considera que estivesse consagrada uma excepção. Segundo este professor, mesmo que se admitisse que havia aqui uma excepção inquisitória à realidade acusatória fixada pelo número 1, esta só era aplicável se as partes fossem ouvidas para alegações complementares, por respeito pelo princípio do contraditório. Ou seja, o próprio legislador determinava que a realidade não era totalmente inquisitória. Para além disso, apenas se permitia que o juiz identificasse de forma nova as invalidades já alegadas, não se dizia que o juiz devia trazer factos novos ao processo. Isto justifica-se porque o juiz é imparcial e decide aquilo que as partes lhe levam até si, não é uma parte em si.  
O professor Aroso de Almeida construía a sua posição conforme exposto porque defendia o direito reactivo do particular. Segundo esta concepção dos direitos, quando haja uma lesão dos mesmos, o particular terá o direito de reagir contra a Administração Pública para afastar a ilegalidade do acto que afecta os seus direitos. O particular tem este direito de afastamento e o juiz deve avaliar todas as formas de invalidade, incluindo as que não tenham sido invocadas pelo particular.
Mas, segundo o Professor Pereira da Silva, esta teoria de direitos subjectivos não é admissível no quadro do direito substantivo ou do direito processual administrativo. 
Por um lado porque confunde o direito de acção com os outros direitos subjectivos substantivos que foram violados e para os quais existe o direito de ir a tribunal. Esta teoria reduz tudo a direitos processuais, desconsidera a distinção entre os direitos substantivos e os direitos procedimentais.
Por outro, porque esta teoria confunde a relação jurídica processual com a substantiva. Reduz tudo à relação jurídica processual quando esta não é necessariamente equivalente à relação procedimental nem corresponde aos sujeitos da relação jurídica material. Também neste aspecto a visão do direito reactivo não corresponde a uma realidade clara por confundir o processo com a realidade substantiva.  
O professor Teixeira de Sousa, por sua vez, defendia que fazia sentido o juiz trazer factos novos ao processo, porque o juiz tinha uma posição semelhante ao do MP. Mas esta posição é de rejeitar, porque o MP é uma parte processual e o juiz não; o juiz é imparcial. O juiz nunca pode ser transformado em parte.  

Ainda assim, é inegável que o juiz tem um novo poder de conhecimento da causa de pedir. Para o professor Vasco Pereira da Silva, esta norma significa duas coisas:
O juiz pode corrigir as qualificações jurídicas feitas pelas partes e pode corrigir os enganos dos particulares, porque é o juiz quem conhece do direito;
E se as partes identificarem na causa de pedir os vícios, o juiz não é obrigado a analisar a causa de pedir em razão desses vícios, podendo olhar directamente para os factos e, em função deles, construir a causa de pedir, identificando-a da forma correcta.
Ou seja, o art. 95º determina que o juiz tem um poder de qualificação diversa dos factos e um poder de ir além dos vícios.

Beatriz San Payo (140114080)

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