√ 3 × 95º/3 = acusatório ou inquisitório?
Em 2004, o legislador
mudou a causa de pedir num bom sentido, que fica agora aberta à realidade
substantiva.
Antes de 2004
seguia-se uma lógica objectivista do processo, que levava a que o foco do
processo fosse a legalidade objectiva de um acto. Porém, embora a causa de
pedir seja um elemento do processo, ela não era entendida em termos objectivos.
A doutrina e a jurisprudência defendiam a teoria das hipóteses de erro, baseada
no efeito do caso julgado. A teoria das hipóteses de erro realça que a noção de
objecto do processo é decisiva para delimitar o conteúdo do caso
julgado. Assim sendo, em vez de se defender que o juiz devia considerar todas
as formas de invalidade (mesmo as que não fossem alegadas), esta teoria
determina que o objecto do processo não deve ser sem mais a
legalidade.
O objecto do processo
era construído pelas alegações dos particulares na causa
de pedir, que era qualificada em relação aos vícios dos actos
administrativos. Ou seja, o critério não era objectivista como devia ser, era
na verdade relacional. Isto era uma contradição.
Esta posição havia
sido construída pelo Professor Marcello Caetano e implicava que o juiz não ia
apreciar sem mais a legalidade em razão do que o particular alegava, antes
ia apreciar apenas os vícios do acto administrativo tal como tinham sido
alegados. Por isso a lei vai conter uma enumeração dos vícios dos actos
administrativos.
A partir de 1976, este
paradigma mudou. A CRP de 1976 manteve uma última referência dos vícios
dos actos, mas a noção desaparece depois com as revisões constitucionais. Deixa
de ser obrigatório, muito menos necessário, que sejam alegados quaisquer
vícios. A única coisa que o particular vai ter de alegar é o pedido e
a causa de pedir. E será em função da alegação se construirá o objecto
do processo.
Enquadrando esta
teoria dos vícios dos actos administrativos, esta surge por razões históricas,
e demonstrava que os vícios correspondiam a formas de invalidade da actuação da
administração. A invalidade era como um bolo envenenado, com venenos
diferentes e dependendo de quantas fatias que se comessem (sendo, assim, mais
grave ou menos).
A
ilegalidade podia ser orgânica, formal, processual ou material. Bastava
verificar-se uma ilegalidade para o acto ser inválido.
O problema era que a
enumeração era ilógica e incompleta. E ter de alegar vícios, depois apenas apreciando esses vícios
alegados, não permitia apreciar a relação jurídica administrativa.
Hoje em dia, a
sentença proferida em sede do contencioso administrativo deve discutir todas as
questões que as partes tragam à causa. O juiz conhece de tudo o que tenha
sido alegado, mas apenas o que tenha sido alegado, o que é contraditório. Contudo,
a novidade do contencioso é demonstrada pelo artigo 95º, número 1, que dispõe
que a sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à
sua apreciação e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o
conhecimento oficioso de outras.
Porém, há
uma pequena discussão entre os professores Vasco Pereira da Silva e Mário
Aroso de Almeida acerca da interpretação correcta a dar ao artigo 95º. A questão
prende-se com saber se a formulação geral do número 1 do artigo 95º foi ou não
excepcionada pela formulação do número 2 do mesmo artigo.
Antes, no artigo 95º,
número 1, lia-se “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, (…)”. Esta formulação podia
conduzir a que se considerasse que o que vinha disposto no número 2 do artigo
era uma excepção ao número 1. O que o número 2 do artigo 95º determinava era
que o juiz se devia pronunciar sobre todas as causas alegadas, excepto quando
não dispusesses dos elementos essenciais para o efeito, assim como devia
identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tivessem sido
alegadas
O professor Mário
Aroso de Almeida defendia que esta regra introduzia uma dimensão inquisitória ao processo
administrativo e que o juiz podia trazer factos novos para
o processo. Por sua vez, o professor Vasco Pereira da Silva não considera
que estivesse consagrada uma excepção. Segundo este professor, mesmo que se
admitisse que havia aqui uma excepção inquisitória à realidade acusatória fixada
pelo número 1, esta só era aplicável se as partes fossem ouvidas para
alegações complementares, por respeito pelo princípio do contraditório. Ou
seja, o próprio legislador determinava que a realidade não era totalmente
inquisitória. Para além disso, apenas se permitia que o juiz identificasse
de forma nova as invalidades já alegadas, não se dizia que o juiz devia trazer
factos novos ao processo. Isto justifica-se porque o juiz é imparcial e decide
aquilo que as partes lhe levam até si, não é uma parte em si.
O professor Aroso
de Almeida construía a sua posição conforme exposto porque defendia o direito
reactivo do particular. Segundo esta concepção dos direitos, quando haja uma
lesão dos mesmos, o particular terá o direito de reagir contra a
Administração Pública para afastar a ilegalidade do acto que afecta os seus
direitos. O particular tem este direito de afastamento e o juiz deve avaliar
todas as formas de invalidade, incluindo as que não tenham sido invocadas pelo particular.
Mas, segundo o
Professor Pereira da Silva, esta teoria de direitos subjectivos não é
admissível no quadro do direito substantivo ou do direito processual
administrativo.
Por um lado porque
confunde o direito de acção com os outros direitos subjectivos
substantivos que foram violados e para os quais existe o direito de ir a
tribunal. Esta teoria reduz tudo a direitos processuais, desconsidera a
distinção entre os direitos substantivos e os direitos procedimentais.
Por outro, porque esta
teoria confunde a relação jurídica processual com a substantiva. Reduz
tudo à relação jurídica processual quando esta não é necessariamente
equivalente à relação procedimental nem corresponde aos sujeitos da
relação jurídica material. Também neste aspecto a visão do direito reactivo não
corresponde a uma realidade clara por confundir o processo com a
realidade substantiva.
O professor Teixeira
de Sousa, por sua vez, defendia que fazia sentido o juiz trazer factos
novos ao processo, porque o juiz tinha uma posição semelhante ao do MP.
Mas esta posição é de rejeitar, porque o MP é uma parte processual
e o juiz não; o juiz é imparcial. O juiz nunca pode ser transformado
em parte.
Ainda assim, é
inegável que o juiz tem um novo poder de conhecimento da causa
de pedir. Para o professor Vasco Pereira da Silva, esta norma significa
duas coisas:
O juiz pode
corrigir as qualificações jurídicas feitas pelas partes e pode
corrigir os enganos dos particulares, porque é o juiz quem conhece do
direito;
E se as partes
identificarem na causa de pedir os vícios, o juiz não é obrigado a
analisar a causa de pedir em razão desses vícios, podendo olhar
directamente para os factos e, em função deles, construir a causa
de pedir, identificando-a da forma correcta.
Ou seja, o art. 95º determina
que o juiz tem um poder de qualificação diversa dos factos e um poder de
ir além dos vícios.
Beatriz San Payo (140114080)
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