sábado, 8 de dezembro de 2018

"É Tudo Farinha do Mesmo Saco": O Contencioso Contratual da Função Administrativa



"É Tudo Farinha do Mesmo Saco"
O Contencioso Contratual da Função Administrativa

Durante o período da “infância difícil do contencioso administrativo”, cabia aos tribunais administrativos, enquanto órgãos administrativos especiais, proteger a Administração, isentando os respectivos actos do controlo judicial. Mas, desde os finais do séc. XIX, que se entendeu que também certos contractos celebrados pela Administração eram merecedores desta especial protecção, devido à sua importância económica e política.

Surgiu assim uma dicotomia ao nível dos contractos celebrados pela Administração Pública, inicialmente por razões de ordem prática e com consequências meramente processuais mas que rapidamente foi justificada por razões substantivas de criação doutrinal, passando a ter consequências também substantivas. Passou-se então a distinguir entre os contractos administrativos, que correspondiam ao exercício da função administrativa e que estavam sujeitos ao controlo dos tribunais administrativos e os contractos de direito privado da Administração, em que a Administração Pública actuava como um particular, sendo por isso regulados pelo direito civil e estando sujeitos ao controlo dos tribunais judiciais.

Por outro lado, a própria noção de contracto administrativo assentava numa contradição, tratando-se de um acordo de vontades, ou seja, um negócio jurídico bilateral celebrado entre a Administração e os particulares, que levava a que o particular ficasse subjugado ao poder administrativo, tratando-se então, simultaneamente, do exercício de poderes unilaterais autoritários. Ou seja, por um lado tratava-se de um contracto e por outro esse contracto conduzia a uma subjugação do particular.

Passou então a existir um regime jurídico especial, de direito público, para os contractos administrativos e um regime jurídico comum, de direito privado, para os demais contractos em que a Administração intervinha. Esta especialidade era justificada, pela Doutrina, através de inúmeros critérios, designadamente através do critério do “ambiente de direito público”.

A partir dos anos 80, a generalização da actividade contratual enquanto modo normal de exercício da função administrativa levou alguma Doutrina, nomeadamente a Prof. Maria João Estorninho, o Prof. João Caupers e o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a repensar a dualidade existente no domínio da contratação pública. Estes autores apontaram que os contractos ditos administrativos só podiam consagrar poderes que fossem admitidos pela lei ou que resultassem do acordo entre as partes, pelo que a Administração Pública não tinha nenhum poder de raiz que lhe permitisse determinar, a seu prazer, o conteúdo do contracto. E por outro lado, que os contractos ditos de direito privado não eram exactamente iguais aos contractos celebrados entre particulares, uma vez que o que estava em causa era a realização de interesses administrativos e a gestão de poderes públicos, estando também estes contractos submetidos às regras e procedimentos administrativos.

Surgiu então uma tendência no sentido da unificação da actividade contratual da Administração Pública. Mas não foi esta discussão doutrinal que mudou o rumo das coisas, foi necessário um impulso por parte da União Europeia. A União Europeia, enquanto mercado comum e união económica, onde existe livre circulação de bens, pessoas e capitais, precisava de estabelecer um conjunto de regras comuns em termos de contratação pública. Mas cedo se deparou com um problema, nomeadamente o facto de na maioria dos países europeus não existir uma distinção entre contractos administrativos e contractos de direito privado. As únicas soluções possíveis eram impor a esses países esta distinção ou então estabelecer um regime unitário europeu de contratação pública, tanto a nível substantivo como processual, que foi a solução adoptada. A União Europeia estabeleceu então, essencialmente através de directivas, que todos os contractos que correspondem ao exercício da função administrativa são considerados contractos públicos e veio ainda dizer que a contratação em determinados sectores, como é o caso da energia, da água, etc., é também pública, independentemente das entidades que neles intervenham, uma vez que se tratam de sectores de interesse público.

Em resultado da transposição das directivas comunitárias, houve uma reforma do  contencioso administrativo português, tendo o legislador português estabelecido, nos artigos 1º e 4º alíneas b), e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) que todos os contractos correspondentes ao exercício da função administrativa são da competência dos tribunais administrativos, pondo assim em causa a primeira parte da distinção entre contractos administrativos e contractos de direito privado da Administração, que era a de serem submetidos a tribunais diferentes. 

Seria de esperar que a consagração de uma unidade jurisdicional relativamente a toda a actividade contratual da Administração Pública fosse suficiente para superar a antiga dicotomia esquizofrénica, mas, se por um lado se estabeleceu no artigo 4º do ETAF uma noção ampla de contracto, que abrange todos os contractos celebrados no âmbito da função administrativa, por outro, criaram-se regimes especiais para certas espécies de contractos, continuando a fazer-se referência aos ditos contractos administrativos.

No entanto, do artigo 4º ETAF resulta que compete ao contencioso administrativo a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a quaisquer contractos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública e, por sua vez, o Código da Contratação Pública regula todos os contractos celebrados pela Administração Pública. Como tal, apesar de existir uma referência avulsa aos ditos contractos administrativos, esta referência não têm nenhuma relevância uma vez que todo o universo da contratação pública está sujeito ao contencioso administrativo. Os contractos administrativos são, pois, apenas uma das várias espécies de contractos reguladas pelo Código da Contratação Pública, que têm um regime diferente uma vez que nesses casos estão em causa poderes públicos e a prossecução do interesse público.

Assim, a distinção esquizofrénica entre contractos administrativos e contractos de direito privado da Administração deixou de fazer sentido, tendo o legislador português acolhido a visão unitária e comunitária de contractos públicos, sendo hoje em dia estas duas “espécies” de contractos nada mais nada menos do que farinha do mesmo saco.

Bibliografia:
  • Aulas teórico-práticas;
  • PEREIRA DA SILVA, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo; Edições Almedina, 2.ª Edição de 2009;

Madalena Costa
140114072


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