domingo, 9 de dezembro de 2018

Da condenação à prática do acto devido

Da condenação à prática do acto devido 

Em razão do princípio da separação de poderes durante muito tempo existiu a ideia de que o juiz só podia anular actos administrativos não podendo nunca dar ordens de qualquer espécie às autoridades administrativas. Esta interpretação política "francesa" do princípio da separação de poderes era tão utilizada que quase que se transformava em argumento da ordem jurídica, fazendo-se uma confusão entre julgar e administrar e portanto considerar que condenar a administração seria a mesma coisa que praticar  actos em vez dela ou substituir  a sua actuação pela dos tribunais.
De acordo com o "figurino" francês o tradicional Contencioso Administrativo tinha como seu centro o recurso de anulação, a condenação da administração só era admitida de forma limitada ao domínio das acções em matéria de contractos e de responsabilidade. Em Portugal é a revisão constitucional de 1997 que vem estabelecer de forma expressa que a possibilidade de «determinação da prática de actos administrativos legamente devidos» é uma componente essencial do princípio de tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares face à administração (art.268º, nº4 CRP). O centro do Contencioso Administrativo passa agora a ser o princípio de tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares. Assim surgiu a acção de condenação à prática de acto devido contemplada nos arts. 66º a 71º do CPTA.

Existem duas modalidades de acção administrativa de condenação à prática do acto devido consoante esteja em causa a necessidade de obter a prática de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado (art.66º,nº1 CPTA). Estas modalidades correspondem aos dois pedidos principais que podem ser suscitados através desta acção que são o pedido de condenação na emissão do acto administrativo omitido e o pedido de condenação na produção de acto administrativo de conteúdo favorável ao particular em substituição do acto desfavorável anteriormente praticado.

O CPTA ao regular esta "subespécie" de acção administrativa adopta uma concepção ampla de objecto do processo pois estabelece no nº2 do art.66º que "o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento,cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória". Isto significa que o objecto do processo não é nunca o acto administrativo, é antes o direito do particular a uma determinada conduta da administração correspondente a uma vinculação legal de agir ou de actuar de uma determinada maneira (que pode ter lugar mesmo no domínio da chamada discricionaridade). Relativamente ao poder discricionário, o mesmo não pode ser considerado como um "poder à margem da lei" ou como uma excepção ao princípio da legalidade, deve antes ser visto como um modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas que sendo da Responsabilidade da Administração não são completamente "livres" pelo que o controlo jurisdicional dos parâmetros que conformam a discricionaridade é sempre possível, podendo daí resultar sentenças de condenação na medida dos aspectos vinculados do poder discricionário. Dizer que o objecto do processo corresponde à pretensão do interessado, tratando-se de uma acção para defesa de interesses próprios, é o mesmo que dizer que o objecto do processo é direito subjectivo do particular. Deste modo a concepção de objecto do processo abrange o pedido imediato (a condenação na prática do acto devido) que decorre do pedido mediato também abrangido (o direito subjectivo do particular), direito esse que foi lesado pela omissão ou pela actuação ilegal da administração (que é a causa de pedir também abrangida no objecto do processo). O objecto do processo é então o direito subjectivo do particular no quadro da concreta relação jurídica administrativa substantiva.

O CPTA para referir este objecto do processo utiliza a expressão "pretensão", o que é, na perspectiva do Prof. Vasco Pereira da Sila, algo equívoca do ponto de vista substantativo pois o que está em causa no processo administrativo é, a seu ver, o direito subjectivo do particular na concreta relação jurídica administrativa para cuja defesa ele actua em juízo, e não uma qualquer pretensão ou posição substantiva construída a partir do processo, confundido o legislador a relação processual com a substantiva.

Do exposto decorre que a existência ou não de um acto administrativo prévio é irrelevante. Mesmo quando exista um acto administrativo prévio a apreciação jurisdicional não incide sobre ele, não sendo, por isso, necessário que o particular formule qualquer pedido relativamente a ele nem que utilize outro meio processual para obter o seu afastamento da ordem jurídica (art.66º,nº2, in fine CPTA).

Do art.71º,nº1 do CPTA resulta também claramente a ideia de que o que está em causa na acção de condenação é o próprio direito da relação jurídica substantiva e não um qualquer acto existente ou que devesse ter existido ao estabelecer que "Ainda que o requerimento apresentado não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, anulando ou declarando nulo o eventual acto de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido." O que significa que o tribunal vai apreciar a concreta relação administrativa existente entre o particular e a Administração de modo a apurar o direito do particular e o dever da administração que lhe corresponde e assim determinar o próprio conteúdo do acto que é devido. O tribunal deve proceder a um juízo material sobre o litígio julgando acerca da existência e do alcance do direito do particular e portanto, consequentemente, determinar o conteúdo do comportamento da administração juridicamente devido.

O art. 70º CPTA prevê a possibilidade de integrar no objecto do processo pedidos relativos não apenas a actos de indeferimento (nº1) mas também de deferimento parcial das pretensões dos particulares (nº3), que sejam praticados pela administração na pendência do processo. Isto enquadra-se na nova lógica da passagem do "juízo sobre o acto"  para o "juízo sobre a relação administrativa" determinada pela reforma do Contencioso Administrativo.

A condenação implica automaticamente o afastamento do eventual acto administrativo da ordem jurídica independemente de pedido do particular ou de cominação expressa na sentença (art.66º,nº2, in fine CPTA), mas o CPTA também prevê a situação inversa ao estabelecer no art.51º,nº4 que "Se contra um ato de indeferimento ou de recusa de apreciação de requerimento não tiver sido deduzido o adequado pedido de condenação à prática do acto devido, o tribunal convida o autor a substituir a petição, para o efeito de deduzir o referido pedido." Desta forma, o Código considera, uma vez mais, que aquilo que é o objecto de apreciação jurisdicional em todas as situações em que a administração se encontra vinculada a actuar de um modo favorável ao particular não é o acto administrativo ou a sua falta é antes o próprio direito do particular a essa conduta devida.

O pedido de condenação tem lugar quando a administração não actuou quando a isso era legalmente obrigada ou quando não praticou um acto administrativo favorável ao particular conforme era devido, isto é, para a acção de condenação poder ter lugar é sempre necessário que tenha havido a preterição de uma vinculação legal. O art.71º,nº2 do CPTA estabelece que "Quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do ato a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela adminsitração na emissão do ato devido." Isto significa que as sentenças de condenção à prática de acto devido não podem limitar-se a cominar a prática de um acto administrativo, devem antes determinar, em concreto, qual o âmbito e o limite das vinculações legais existentes para a actuação administrativa.

Do pedido de condenação à prática do acto devido resultam duas principais modalidades de sentenças quando ao conteúdo:

1. aquelas que cominam à prática de um acto administrativo  cujo conteúdo é determinado pela sentença pois corresponde ao exercício de poderes vinculados tanto quanto à oportunidade como quanto ao modo de exercício. É uma sentença de condenação que impõe à administração a prática de um acto administrativo com um determinado conteúdo.

2. aquelas que cominam à prática de um acto administrativo cujo conteúdo é relativamente indeterminado pois se encontra no âmbito do exercício do poder discricionário da administração e portanto estão em causa escolhas que são da responsabilidade da administração, mas o tribunal deve indicar a "forma correcta" de exercício do poder discricionário, no caso concreto, estabelecer o alcance e os limites das vinculações legais e fornecer orientações quanto aos parâmetros e critérios de escolha/decisão.


Bibliografia:
"O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Vasco Pereira da Silva, 2º edição Almedina



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