terça-feira, 11 de dezembro de 2018


Contencioso administrativo plenamente  jurisdicionalizado- Uma reforma que ficou a meio?
A reforma que foi abordada pela Assembleia da República em 2002 e que entrou em vigor em 2004, consequência de um período de vacatio legis de dois anos que se deveu à necessidade de reorganizar a justiça administrativa em função da nova realidade; trouxe uma alteração profunda no contencioso administrativo Português, que se consubstanciou em dois diplomas legais: o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Processo dos Tribunais Administrativos.
Enquanto o Estatuto veio organizar a Justiça Administrativa e Tributária, nos termos do artigo 211º nº 3 da Constituição, que existe para a tutela das relações jurídicas administrativas e fiscais, e veio definir o âmbito da jurisdição dos Tribunais Tributários e dos Tribunais Administrativos; o Código do Processo dos Tribunais Administrativos veio cria meios processuais destinados à tutela dos direitos dos particulares, e apenas diz respeito aos Tribunais Administrativos e já não aos Tributários.

Tratam-se de dois diplomas autónomos mas complementares. Para além disso, a proposta de Lei de Responsabilidade Civil que na altura também teve em discussão mas acabou por não ser aprovada em 2002-2004, entrou em vigor em 2008 no quadro da nossa Ordem Jurídica.
Estes três diplomas legais, criados no quadro da reforma de 2002-2004, criaram finalmente o tão esperado sistema jurídico que veio regular o Contencioso Administrativo por forma a torná-lo pela primeira vez plenamente jurisdicionalizado. Em termos concretos, isso significou que o juíz passou a gozar de plenos poderes em face da Administração, deixou de ter qualquer tipo de limitação em face do poder administrativo para tutelar eficazmente os direitos dos particulares. O contencioso renasceu para a verdadeira e plena tutela de qualquer direito dos particulares.

A “reforminha”
Em 2015 surgiu, na sequência de uma reforma do Código de Procedimento Administrativo em 2002-2004, uma Comissão constituída por vários Professores e Administrativistas Portugueses  que veio fazer uma reforma da reforma do CPA. Em rigor não alterou muita coisa e o que fez foi uma compatibilização com o contencioso administrativo mais ideológica do que material. Preocupou-se mais com os conceitos do que com as soluções e, no essencial, foi relativamente reduzida pelo que não alterou substancialmente aquilo que tinha sido introduzido em 2002-2004. Assim, ficou conotada como uma reforma de Professores sendo que a grande reforma do Contencioso Administrativo Português continuou a ser a de 2002-2004.

Uma reforma que ficou a meio?
Os problemas da organização da Justiça Administrativa que ainda hoje subsistem e são apontados são vários, e resultam do facto de o legislador não ter tido a coragem de tirar todas as consequências da existência de uma jurisdição especializada em matéria de Contencioso Administrativo. De facto, se se adotou um contencioso especial para a Administração, é preciso que os seus juízes tenham formação específica de Direito Administrativo, que conheçam as questões de Direito Administrativo, que tenham uma carreira autónoma e que existam Tribunais especializados dentro da jurisdição administrativa. E nada disto se verifica ainda.
  1. A formação dos juízes dos Tribunais Administrativos tem sido uma formação ad hoc dada pelo Centro de Estudos Judiciários. Não é uma formação específica dos juízes antes é uma formação genérica com mais algumas disciplinas de Direito Público. Apesar de isto ser melhor que nada e terem-se notado melhorias no sistema judiciário, não é o suficiente para transformar o juiz administrativo num verdadeiro especialista nas questões administrativas e portanto isto vem enfraquecer a qualidade do juiz. É necessário institucionalizar a formação, não ser uma realidade ah hoc criada para cada concurso mas uma formação institucionalizada de Direito Administrativo e de Contencioso Administrativo no CEJ.
  2. Não houve ainda a criação de uma carreia única para os juízes dos Tribunais Administrativos. Sabemos que o Supremo Tribunal Administrativo é simultaneamente Tribunal de primeira instância dos órgãos superiores do Estado e Tribunal de recurso de todas as atuações da Administração, apreciadas pelos Tribunais Administrativos de Círculo e pelos Tribunais Centrais Administrativos, ou seja, comporta 3 Supremos Tribunais Administrativos. Isto logicamente significa que há mais lugares na Justiça Administrativa, o que leva os juízes no final da carreira a concorrerem aos Tribunais Administrativos para se reformarem caso não encontrem lugar nos Tribunais Judiciais Isto traz inconvenientes para a qualidade da Justiça, porque juízes em final de carreira não só não estudaram especificamente Contencioso Administrativo na Faculdade porque essa cadeira só recentemente ganhou autonomia, como não vão querer estudar tudo de novo por iniciativa própria e portanto é comum não terem conhecimento de todas as transformações que houve entretanto e isso reflete-se nas decisões. Claro que se está a fazer aqui uma generalização que não põe em causa a existência de exceções. Mas em geral, uma regra que permita um juiz transitar da jurisdição dos Tribunais Judiciais para a jurisdição dos Tribunais Administrativos por dois anos, até se reformar, só porque não há lugar nos Tribunais Judiciais não é um bom sistema.
  3. Necessário criar certas áreas especiais de Direito Administrativo, estabelecer um mecanismo que criasse Tribunais Administrativos especiais dentro da Justiça Administrativa, à semelhança do que acontece no Direito Alemão, em que os Tribunais Administrativos podem ser Tribunais generalistas, que discutem todas as questões, ou podem ser Tribunais especializados em razão de determinadas matérias. Mesmo sendo possível haver processos de massa através da junção dos processos com o mesmo objeto, existe um enorme volume de processos a que os Tribunais não conseguem fazer face. Portanto a especialização é necessária, criando Tribunais em matéria de funcionalismo publico, Tribunais em matéria de urbanismo e em matéria de ambiente.


Se, estas três questões: a formação dos juízes, a carreira e a especialização, são questões que deviam ter sido resolvidas no Estatuto, não o foram e até hoje mantém-se. 

Concluímos, assim, que a Reforma de 2002-2004, cuja pretensão era dar ao juiz plenos poderes em face da Administração para a tutela jurisdicional efetiva dos direitos dos particulares fica ainda hoje aquém do que poderia alcançar caso houvesse uma boa especialização dos juízes e a criação de juízos administrativos especializados em matérias fonte de litígios frequentes.


Leonor Cid (140115087)

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