quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Impugnação em matéria de regulamentos


Analisando a impugnação em matéria de regulamentos administrativos, põe-se a questão: a que corresponde, na nossa ordem jurídica, a impugnação de norma jurídica que o legislador  se refere? 
1) Tradicionalmente havia no direito administrativo, diferentes formas de atuação da administração, conhecidas como regulamentares. Atualmente, o regulamento administrativo é uma categoria que aumentou devido à multilateralidade das atuações administrativas. É o conjunto de decisões que têm uma multiplicidade de destinatários que se destinam a regular a situação de uma coisa ou de um bem jurídico, ou surgiram de normas de natureza programática (diversidade de programas no quadro da atuação administrativa). Esses programas podem surgir em matéria de urbanismo, nos planos municipais, regionais ou nacionais, e isto introduziu uma transformação não só nas formas de atuação da administração como na própria revelação administrativa. As habituais regras do direito administrativo eram as regras “se… então”, se acontecer alguma coisa então acontece isto, estatuição e previsão, agora temos a regra estabelecida em função de meios e fins. Este sistema tem a ver com uma lógica de uma maior flexibilidade normativa.
O Professor Vasco Pereira da Silva entende que essas atuações devem conduzir a um alargamento da noção de regulamento administrativo. Para além daquilo que é tradicional na doutrina portuguesa – regulamentos caracterizam-se pela generalidade e na abstração (generalidade tem a ver com os destinatários da norma e abstração com as situações da vida que estão ou não a ser reguladas), o CPA nesta versão de 2015 adotou os critérios clássicos, pois para além de definir o ato administrativo como sendo individual e concreto, quando trata dos regulamentos também estabelece que eles são gerais e abstratos. Da perspetiva do Professor, este “e” no meio de “gerais e abstratos” não é a lógica mais adequada; em vez do “e” devia estar um “ou”, isto é, deveria ser “geral ou abstratos”, basta uma destas qualificações para estarmos perante uma norma jurídica e aplicar-se regras administrativas. Se há regulamentos que gozam da generalidade e abstração, se aplicam a multiplicidade de sujeitos e multiplicidade de situações na vida, haverá na perspetiva do Professor outras normas jurídicas que têm generalidade de sujeitos, mas que se esgotam numa única situação da vida. Portanto, parece bem que o legislador nas normas que estabelece no Código de Processo dos Tribunais Administrativos, tenha preferido a expressão “normas administrativas”, que é uma noção mais ampla para regular estes mecanismos processuais. Esta boa medida do legislador vai de encontra aquilo que é a boa orientação da jurisprudência que tem vindo a alargar o regime dos regulamentos a um conjunto de situações que podiam ser duvidosas se se utilizassem critérios demasiado restritos. Se isso é assim, adotar um conceito restritivo de regulamento teria como consequência inadequada o afastamento dessas realidades de um controlo jurisdicional adequado a esta realidade multilateral no domínio de um contencioso administrativo. Assim sendo, este pressuposto, esta questão prévia deve ser decidida em sentido amplo e estas regras que aparecem, quer relativas à impugnação, quer relativas à condenação, devem ser aplicadas a qualquer norma jurídica, independentemente de ser geral e abstrata ou de possuir apenas uma destas qualidades – portanto usar como critério classificativo. 
Quer isto dizer que o legislador optou, acertadamente, em adotar uma expressão ampla, contrariando inclusive aquilo que o CPA tinha feito de introduzir uma dimensão aparentemente mais restritiva e, portanto, temos agora um conjunto de normas aplicáveis a todas estas situações. 
2)  Estamos perante uma tendência do legislador português, recente, de regular autonomamente a matéria dos regulamentos. É uma tendência portuguesa, que embora recente foi o legislador de 85 que estabeleceu o regime completo e adequado de tutela dos direitos dos particulares em face de alegações normativas; noutros países não é assim. Em frança por exemplo, não se explica o regulamento, portanto não há nenhum meio processual específico para os regulamentos administrativos. O que acontece é que a jurisprudência aplica os mecanismos processuais de impugnação de atos, a regulamentos, e abre ligeiramente o processo, mas nunca tanto como acontece em Portugal no quadro desta realidade surgida em 85. 
Outros países que têm meios específicos, como a Alemanha, há o meio específico para impugnar o regulamento, sendo que tem um meio de aplicação mais limitado do que o de Portugal. Na Alemanha, o mecanismo de impugnação de regulamento apenas diz respeito ao chamado direito da construção, que trata de questões relativas à inverificabilidade de edifícios e de regras urbanísticas ou planificadoras; para além desse mecanismo processual não há como em Portugal um mecanismo genérico de impugnação dos regulamentos. Só encontramos estes mecanismos de impugnação de regulamentos em países latinos como Espanha e Itália, mas mesmo assim com uma dimensão mais reduzida do que aquela que temos em Portugal. Portanto, diz o Professor Vasco Pereira da Silva que esta é uma tradição portuguesa, de procurar estabelecer mecanismos para todos os regulamentos, que parece uma boa solução quer do ponto de vista do direito substantivo, quer do ponto de vista do direito contencioso – boa solução pois os problemas processuais que decorrem de uma norma regulamentar são diferentes dos que decorrem de um ato e de um contrato, e a existência de regras específicas permite uma tutela mais completa dos particulares.
O particular afetado simultaneamente por um ato e por um regulamento, ou por um contrato e um regulamento, tem meios processuais que permitem reagir contra qualquer um destes, o particular está mais protegido e consegue uma tutela plena e efetiva no quadro da ordem jurídica portuguesa.
Porque é que isto aconteceu assim? O Professor Vasco Pereira da Silva diria que é o resultado de um conjunto de situações existentes em Portugal que facilitaram que isso fosse introduzido. Uma delas tem a ver com o sistema português de fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas, pois prevê o mecanismo no âmbito da fiscalização indireta da constitucionalidade efetuada por qualquer tribunal, em que há necessidade de coordenar uma análise de um caso concreto com declarações de natureza geral e abstrata. A existência desse mecanismo em Portugal, tal como a existência o âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, a existência de mecanismos de controlo também da legalidade, fez com que o legislador português tivesse nos anos 85 entendido que haveria razões e boas condições para regular o mecanismo similar relativo à legalidade dos regulamentos. Efetivamente o regime que encontramos nestas normais, tal como o de 85, é um regime muito influenciado pela fiscalização concreta da constitucionalidade e pelas regras que a nossa ordem jurídica adotou quer em termos constitucionais quer em termos legais.
3)  Esta autonomia tem a ver com o facto de anteriormente à Reforma de 85 já existirem mecanismos de controlo de regulamento, mas eles terem um alcance muito limitado. O que existia antes da Reforma era uma norma geral do Código Administrativo que permitia a impugnação, como se fossem atos administrativos, de regulamentos de autarquias locais e de órgãos da administração local - aplicava-se o “local comum”, comum porque abrangia quer os órgãos de Estado quer os órgãos das autarquias locais. No entanto, existindo este mecanismo em relação às autarquias, não havia uma tutela completa em relação aos atos do governo, aos atos da administração singular. Foi uma das questões mais discutidas no quadro da Constituição de 83, um dos laboriosos estudos sobre isso foi saber se em termos de administração central, o sistema protegia ou não o particular.
O que existia em 85 era a possibilidade de haver uma declaração de ilegalidade com força obrigatória geral dos regulamentos, e esta ilegalidade dependia de uma de duas condições alternativas: ou o regulamento ser imediatamente legislativo, ou seja, um regulamento que traduzia um efeito direto na esfera do particular, ou dependia de facto de ter havido um ato de execução, que poria em causa quer o ato quer o próprio regulamento e permitia vir a obter a declaração de ilegalidade genérica. Era um mecanismo completo e era um mecanismo complicado e esquizofrénico, porque havendo uma declaração de ilegalidade genérica que implicava a todos os regulamentos da administração, seja central, local, periférica, comum ou não, era uma ilegalidade que não fazia sentido. Muita gente veio a criticar esta realidade, tal como o Professor Vasco Pereira da Silva. Mas era um mecanismo completo que permita uma tutela efetiva por parte dos particulares, tanto mais que ao lado desta possibilidade de impugnação genérica, havia sempre a possibilidade de impugnação de atos administrativos que executassem regulamentos em que o particular podia pedir a não aplicação do regulamento ao caso concreto.
4) Em 2002/2004 o legislador resolveu manter este regime, mas de forma pior, deu um passo para trás em relação à Reforma de 85 por ter feito várias confusões. Havia duas confusões nessa altura (havendo uma que se mantém), pois confundia a declaração de ilegalidade de um regulamento com a apreciação concreta da legalidade de um ato que conduzia à não aplicação do regulamento. Ou seja, o legislador entendia que era a mesma coisa, tanto fazia impugnar o regulamento como impugnar o ato que traduzia na não aplicação do regulamento quando particular apenas está a pedir a declaração de legalidade do ato. Como confundiu as duas coisas, há declarações de ilegalidade de uma norma geral e abstrata que produz efeito individual e concreto – como é possível norma geral e abstrata possa ser declarada ilegal e que esta declaração só produza efeitos em relação a um caso concreto? Realidade absurda que introduzia a confusão no quadro da tutela dos regulamentos. Na Reforma de 85 esta confusão foi atenuada embora não tenha desaparecido literalmente porque o legislador no número 3 do artigo 73o do CA prevê esta situação de haver declaração de ilegalidade com efeito de natureza incidental; continua a confusão embora atenuada. Acontece que o legislador 2002/2004 não teve um mandato específico para rever integralmente o Contencioso Administrativo, não houve criação de comissão para esse mandato, o que houve foi um órgão administrativo.
Depois houve um segundo erro, ainda dentro de 2002/204, sendo que este desapareceu. Em 97 o legislador constituinte na revisão constitucional tinha estabelecido entre os direitos fundamentais, o direito fundamental de impugnação de regulamentos, esse direito tinha carga fortemente subjetiva. O legislador em 2004 considerou que quem gozava de legitimidade genérica para a impugnação de regulamentos era o Presidente, sendo que o particular estava limitado nos seus poderes, só podia impugnar a concretização do regulamento e isto só produzia as tais declarações de legalidade com efeitos individuais e concretos. Portanto, o legislador quando tava a cumprir as exigências constitucionais constantes do artigo 268º número 5, o legislador acabava por amputar a proteção daquela que era garantida pelo artigo 280º. Uma das críticas é ao carácter inconstitucional da regulação estabelecida em 2004: porque punha em causa a dimensão subjetiva do direito fundamental, porque o particular ficava menos protegido em 2004 do que aquilo que tinha sido em 85, e porque estava a pôr em causa de forma manifestamente inconstitucional o conteúdo de um direito fundamental de acesso à justiça para tutela do indivíduo
Agora, diz-se que relativamente aos regulamentos diretamente aplicáveis, aqueles que produzem imediatamente efeitos na esfera dos particulares, quer os particulares lesados, quer o Ministério Público, quer o ator popular, podem atuar no quadro do Contencioso Administrativo, são partes legítimas para impugnar este diploma. Isto é uma decisão acertada, porque corresponde a um regime que tutela quer os direitos dos indivíduos em face à Administração, quer a legalidade objetiva, porque é preciso reconhecer que no contencioso regulamentar há, comparado com o contencioso dos atos administrativos, há uma dimensão objetiva mais importante. Desse modo, faz sentido que o ator público e o ator popular por motivos de autoridade, provem que a legitimidade exista em condições de igualdade.
5) O legislador criou algo mais, que pode ser uma sub-ação, uma ação especial, no âmbito da ação administrativa, que corresponde à condenação à emissão de normas. O legislador aqui foi influenciado por duas construções doutrinárias que antes da Reforma defendiam a existência de um mecanismo deste tipo: o Professor João Caupers, defendeu a existência de um processo condenatório no domínio do plano urbanismo e o Professor Paulo Otero que em termos genéricos tinha proposto, antes da Reforma, que se estabelecesse um mecanismo genérico de verificação da legalidade das normas à semelhança daquele que existia para a verificação da inconstitucionalidade por omissão. Mas o legislador, e de forma acertada na perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva, foi além daquilo que dizia o Professor João Caupers, pois estabeleceu este mecanismo não apenas em matéria de urbanismo mas em qualquer matéria administrativa, e foi além do Professor Paulo Otero, porque aqui não estamos perante uma simples verificação de ilegalidade - se cai no regime constitucional da omissão de normas administrativas, verificarão que a pedido da Assembleia da República, o Tribunal Constitucional verifica se há ou não uma omissão de uma norma que dê cumprimento à Constituição. 
Aquilo que se verifica aqui é exatamente o mesmo que se verifica no âmbito de condenação de um ato, o que está em causa é uma omissão administrativa, a Administração tinha o dever de atuar perante atos ou em relação a regulamentos – o artigo 13º do CPA regula esse dever de atuar com o dever genérico da Administração. Se há um dever de atuar da Administração e nada fez, está a incumprir esse dever de atuar, sendo, portanto, possível ao Tribunal mandá-la atuar por omissão de conduta. Depois, o saber se essa conduta vai ser ou mais ou menos condicionada com a decisão do Tribunal, depende da vinculação que houver sobre esse – se estiver em causa o exercício de um poder discricionário, a Administração é apenas obrigada a emitir um regulamento, sendo que o conteúdo do regulamento pertence à discricionariedade da Administração (caso do plano do diretor municipal); se a lei estabelecer um determinado conteúdo para esse regulamento, isto é, se estivermos perante um regulamento de natureza complementar ou de execução, esse conteúdo pode ser determinado no conteúdo da sentença que obriga a Administração a atuar (não apenas a Administração tem de praticar o regulamento como o conteúdo do mesmo fica determinado) - mas o juiz está a dar uma ordem à Administração para atuar, porque ao não atuar violou a ordem jurídica, está a cometer uma ilegalidade.
O passo em frente, que foi dado em 2015, foi chamar a esta ação uma ação de condenação e não ação de verificação da legalidade – o que está em causa não é apenas a verificação da legalidade, se assim o fosse era uma sentença de simples apreciação, meramente declarativa, mas o que está em causa é a condenação da Administração a atuar com a fixação de um prazo para essa atuação (artigo 77º).
Em suma, o regime português relativo à impugnação dos regulamentos não só muito bom, como também muito original, sendo que vai além do Direito Alemão, que só a estabelece para o limite da construção, que é apesar de tudo importante, mas limitado, e vai além da lógica Francesa de não excluir os atos.

Maria Forjaz Pereira, Nº 140115078

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