quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Extinção da esquizofrenia entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração

No Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na norma do artigo 4º, diz-se que o contencioso Administrativo é competente para conhecer de qualquer contrato celebrado nos termos da legislação sobre a contratação pública. Existe nesta norma uma remissão para o conceito de contrato público, que é regulado pela Lei da Contratação Pública.

Esta Lei alterou grandemente uma realidade que existia de forma persistente no Direito Administrativo Português e noutros Ordenamentos Jurídicos estrangeiros, que era a da distinção esquizofrénica entre os chamados contratos administrativos e os contratos de direito privado da Administração.

A origem da praga

Esta foi uma das muitas questões oriunda dos traumas com que o contencioso Administrativo nasceu. Em 1789, os revolucionários franceses, na ideia de proteger a Administração, criaram o contencioso Administrativo como um contencioso especial que estava subtraído aos poderes dos Tribunais e que se destinava a proteger a Administração. Contudo, em meados do século XIX, por imperativos do interesse público, surgem uma série de contratos celebrados entre a Administração e os particulares para a realização de tarefas administrativas, como por exemplo a eletrificação das cidades. Fornecer iluminação à cidade correspondia a uma das políticas administrativas consideradas fundamentais para a realização do interesse público, e era conseguida através da celebração de contratos de concessão com empresas privadas, contratos estes que tinham montantes muito elevados. Aquilo que o Conselho de Estado Francês decidiu fazer, então, foi alargar o âmbito do contencioso Administrativo também a estes contratos cujas partes eram a Administração, por um lado, e empresas privadas, por outro.

Perante esta decisão do Conselho Francês, assim nasceu a distinção esquizofrénica e sem justificação entre alguns contratos que passaram a ser da competência dos Tribunais Administrativos e outros que se mantiveram na competência dos Tribunais Civis. Os primeiros eram chamados de contratos administrativos enquanto que os segundos eram chamados contratos de direito privado.
Passou a existir uma esquizofrenia ao nível dos contratos realizados pela Administração Pública.

Os sintomas

A doutrina positivista vai então procurar encontrar um conceito para esquadrar estes contratos públicos, de forma a justificar eles serem diferentes dos outros, quando a diferença era apenas o facto de uns estarem sujeitos aos Tribunais Administrativos e outros estarem sujeitos aos Tribunais Civis. E com isto a doutrina afunda-se na esquizofrenia já existente. Em primeiro lugar a noção de contrato administrativo que vão defender é contraditória, porque há um contrato, ou seja, um acordo de vontades, mas que faz com que particular fique subjugado ao poder administrativo. Ou seja, por um lado diz-se que é um contrato mas por outro diz-se que esse contrato corresponde a uma subjugação ao poder administrativo, o que é antagónico. Em segundo lugar, os positivistas vão defender que uns são regulados pelo Direito Administrativo e da competência dos Tribunais Administrativos, outros são regulados pelo Direito Civil e da competência dos Tribunais Civis quando estamos a falar de contratos semelhantes, que correspondem ambos ao exercício da função administrativa, simplesmente uns envolvem apenas a Administração e outros envolvem os particulares.

A doutrina vai chamar uma série de realidades para tentar explicar este paradoxo mas sem sucesso. Entre elas tenta usar critérios distintivos como o dos poderes de autoridade da Administração ou como o do interesse público, e portanto critérios que criam ao que eles chamavam um “ambiente de Direito Público”. Se houvesse um ambiente de Direito Público, o contrato era Administrativo, se houvesse um ambiente de Direito Privado, o contrato era de Direito Privado. Não havia um só critério mas um conjunto deles para determinar se estávamos perante este “ambiente de Direito Público” ou não. Ora, nas palavras do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, isto significou substituir a razão pelo olfato, cheira a Direito Administrativo ou não. Não foi encontrado nenhum critério lógico que permitisse distinguir estes dois conceitos.

Em alguns países como em França, Itália, Espanha ou Portugal, esta distinção esquizofrénica entre um contrato de Direito Administrativo e um contrato de Direito Privado da Administração era não só adotada pela doutrina como pela própria Administração, o que levou a que existisse um duplo regime jurídico dentro dos contratos no exercício da função Administrativa. Enquanto que uns eram regulados pelo Direito Público, outro eram regulados pelo Direito Privado.

Início da descoberta da cura

Nos anos 70 e 80 alguma doutrina destes países onde esta situação existia começou a contestar esta esquizofrenia e a dizer que não fazia sentido manter esta dualidade no domínio da contratação pública. Em Portugal foi a Professora Maria João Estorninho que lançou a discussão sobre o tema e veio defender uma unificação do contencioso contratual. Esta ideia teve algumas adesões importantes, como a do Professor João Caupers, seguido pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa  e seguidamente pelo Professor Vasco Pereira da Silva.

A Professora Maria João Estorninho provou de uma forma indiscutível que as diferenças entre as regras contratuais diziam respeito aos tipos de contratos em si independentemente de serem públicos ou privados. Um exemplo claro é o dos contratos de empreitada de obras públicas. A verdade é que os considerados poderes exorbitantes que a Administração podia ter nestes contratos são poderes idênticos aos que existem na empreitada de obras privadas. O poder do dono da obra de estabelecer as regras de construção, fiscalizar a atividade do empreiteiro e sancioná-lo, existe tanto num caso como no outro, decorre ou dos contratos ou da lei e são regras que se aplicam quer a empreitada seja pública quer seja privada. E portanto não faz sentido dizer quando está em causa a Administração Pública que ela está a exercer um poder exorbitante e quando está em causa um contrato entre particulares dizer que esse poder de fiscalização e controle decorre do contrato.

Isto vem provar que as diferenças entre vários tipos de contratos tem a ver com a natureza dos contratos (cada contrato gera poderes e deveres diferentes), e que um mesmo tipo de contrato, independentemente de ser realizado entre uma entidade pública e um particular ou entre dois privados, conduz a uma realidade juridicamente idêntica e que justifica um regime unitário.

A segunda prova feita foi a de que nem o contrato administrativo era tão exorbitante como se pretendia, nem o contrato tipo de direito privado podia ser exclusivamente de direito privado. Em primeiro lugar o contrato dito administrativo só podia consagrar poderes que estivessem admitidos na lei, a Administração não tinha nenhum poder autónomo, nenhuma posição de vantagem a priori que lhe permitisse determinar como quisesse os termos da realização de contrato. Os contratos têm uma fonte, ou é a relação jurídica contratual ou a lei, e portanto os contratos ditos administrativos, contrariamente ao que defendia a teorização clássica, eram contratos que tinham por fonte a lei, portanto a Administração tinha que a respeitar. Em segundo lugar, os contratos de direito privado também não eram exclusivamente de direito privado porque estavam submetidos às regras da Administração Pública uma vez que o que estava em causa era a realização de interesses públicos.

A cura

Apesar da discussão doutrinal nos anos 80, a maioria dos autores continuava a aceitar a distinção entre os contratos ditos administrativos e os contratos de direito privado.
O que fez mudar a realidade foi a União Europeia, porque estabeleceu nos finais dos anos 80 e até aos nossos dias um conjunto harmonizado de regras comunitárias reguladoras dos contratos públicos, quer regras procedimentais, substantivas e contenciosas.

Deparou-se com um problema que foi o de alguns países membros terem esta distinção esquizofrénica e outros não, e portanto a UE teve que optar por ou impor aos 33 países esta distinção, ou procurar estabelecer um regime radicalmente diferente, que foi o que acabou por fazer.

Atualmente, o Código da Contratação Pública Português trata os contratos administrativos entre muitas outras espécies de contratos, e portanto como uma modalidade de contratos públicos; e todos os contratos públicos estão submetidos a um regime de Direito Civil.

O artigo 200º do CPA, quando fala em espécies de contratos, diz que os órgãos da Administração Pública podem celebrar contratos administrativos sujeitos a um regime substantivo de Direito Administrativo e/ou contratos submetidos a um regime de Direito Privado. Esta é uma realidade que o Código da Contratação Pública afastou, e portanto estas normas que aqui aparecem no artigo 200º, 202º e 202º do Código do Procedimento são normas proclamatórias que não são aplicáveis, não têm eficácia e que correspondem à declaração de algo que é hoje contrariado pelas regras do regime jurídico da contratação pública que está no Código da Contratação Pública.

Leonor Cid (140115087)

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