domingo, 9 de dezembro de 2018

A CONTRATAÇÃO PÚBLICA NOS ALVORES DO SÉCULO XX

O CASO DA COMPANHIA DE FERRO DE BENGUELA

Rodrigo Chrystêllo Tavares 

A D. C.M.P.L.




A Europa do post Waterloo, entendida segundo os rituais do Congresso de Viena, no qual Portugal se achou representado pelos seus ministros Saldanha da Gama e Lobo da Silveira, pouco desfrutou da paz que tão entusiasticamente celebrara.

Conhecia nesse tempo o Velho Continente uma larga expansão demográfica, industrial e comercial; por seu turno, eram anunciados a Portugal, uma vez derrubado o governo do marquês de Tomar, os frutos do fomento económico e industrial da Regeneração.

A derrota dos boers, que determinou o colapso do Estado Livre de Orange e do Transvaal e a criação da União Sul-Africana, permitiu almejar uma colossal ligação ferroviária entre a Cidade do Cabo e o Cairo, o plano C-C, de Cecil-John Rhodes, que atravessava o Sudão Anglo-Egípcio, o Estado Livre do Congo, possessão pessoal do rei Leopoldo II dos Belgas, a Rodésia e a Bechuanalândia.

Perante esta situação, com diferentes interesses no continente africano, vinha-se aclarando a inviabilidade da ligação da Costa, a África Ocidental portuguesa, à Conta-Costa, África Oriental, percorrida por Hermenegildo Capello e Roberto Ivens.

Otto von Bismarck, o sagaz e eloquente chanceler de Guilherme I a quem se ficou a dever a unificação alemã e a cedência de Viena face a Berlim na preponderância no mundo germânico, convidou à novel capital do Reich, em 1887, os representantes das potências europeias com o objectivo de, entre si, dividirem o continente africano, de acordo com a sua célebre weltpolitik. No entanto, o mapa cor-de-rosa, desenhado na Sociedade de Geografia de Lisboa, sob protecção régia, e apresentado pelo marquês de Penafiel e por António de Serpa Pimentel, foi repudiado pelo governo conservador de Robert Gascoyne-Cecil, marquês de Salisbury, que haveria de intimar Portugal a retirar os seus súbditos, nomeadamente a coluna militar do major Alexandre de Serpa Pinto, da região dos macololos, Alto Zambeze, e machonas, Niassalândia, conduzindo ao Ultimatumbritânico. Não mais o direito histórico, a lança de África, de D. Pedro de Menezes, Salvador Correia de Sá ou Pêro de Anhaya, valia face aos desideratos expansionistas europeus.

É sobretudo como decorrência da corrida a África que o sertão angolano conhecerá a civilização. Nos finais de Oitocentos, Henrique Dias de Carvalho faz o reconhecimento da região diamantífera da Mussumba e do Muatiânvua, nas Lundas. Nova Lisboa virá a ser fundada em 1912 por Norton de Matos, Silva Porto prossegue pelo interior do Bié. Na década de 1870 haviam sido celebrados 12 contratos entre o Governo e particulares para construção e exploração de largos traçados ferroviários. 

Este melhoramento, que podia assegurar o mais rápido e económico escoamento dos produtos cultivados no fértil Planalto Central angolano, como dos oriundos da Rodésia, tida porceleiro de África, e ainda do Congo, nomeadamente da rica região mineira do Catanga, em detrimento de uma costa oriental, bordejada pelo Índico, tida por agreste e infértil, iniciava-se no Lobito, prosseguindo por Benguela rumo ao Planalto Central, Nova Lisboa, Chinguar, Silva Porto, até chegar a Luau, ao quilómetro 1348, fronteira com o Congo Belga.

Em 1901 é lançado concurso público para a concessão da linha, entre o Lobito e o Monte Sahoa. Nesse ano, o engenheiro Robert Williams propõe a Ernesto de Vasconcelos e ao marquês do Soveral que fossem seus intermediários com o governo português. O contrato para a construção do traçado foi assinado aos 28 de Novembro de 1902, por António Teixeira de Sousa, ministro do Ultramar, e Robert Williams, engenheiro de Minas escocês amigo de Cecil-John Rhodes, a quem Londres conferiria a mercê de baronete de Park e Lisboa a comenda da Ordem de Cristo, perante o bacharel António Osório Sarmento de Figueiredo, ajudante do Procurador-Geral da Coroa e Fazenda.



Ao contrário do que hoje postula o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, achavam-se, neste tempo, os contratos celebrados pela Administração excepcionalmente sujeitos aos tribunais administrativos, e subsidiariamente submetidos à apreciação dos tribunais comuns. Podemos qualificar este contrato de concessão como paradigmático do modo como se entendia a realidade administrativa de então.

Amplamente considerava a doutrina francesa que, em regra, nesta espécie de contratos a Administração afastava as suas prerrogativas de poder público, representando o mesmo papel de qualquer cidadão quando contrata em nome de outrem, e que, por consequência, os litígios emergentes do cumprimento de tais contratos eram do conhecimento dos tribunais judiciais comuns; larga foi, no entanto, a prática de os submeter aos tribunais administrativos.

Qual o motivo desta aparente contradição? Defendiam abalizados jurisconsultos, nomeadamente Laferrière e Berthélemy, que em razão do interesse público que se visava tutelar, a instância administrativa era mais expedita do que a comum, além de mais conhecedora das matérias em juízo.

Entre nós, também a jurisprudência e a doutrina acompanhavam estas considerações. Magalhães Collaço, lente que foi de Coimbra, escreveu relativamente aos contratos de concessão de obras públicas (que posteriormente haveriam de ser deserviços públicos) que o contencioso destas concessões deve considera-se sujeito, como regra, às jurisdições administrativas, quando ele provenha do funcionamento e execução de um serviço público. Para esse entendimento determinava o artigo 325º do Código Administrativo de 1896.

Não obstante a apreciação pelos tribunais administrativos, um decreto coevo, de 17 de Junho de 1909, a propósito de uma contenda da Companhia de Gaz do Porto, determinava que a matéria de reclamação, e como dispunha o Código Administrativo, era do conhecimento dos tribunais comuns, e não dos tribunais administrativos.

Ainda assim, repetidos foram os casos em que se incluíram cláusulas estabelecendo o juízo arbitral para resolução dos diferendos, o que os códigos expressamente proibiam. No contrato de concessão da Companhia de Caminhos de Ferro de Benguela (CCFB), o artigo 60º preceitua que   

Todas as questões relativas à execução do presente contrato (...) entre o Governo e a Companhia, serão decididas por árbitros: dois nomeados pelo Governo, dois pela Companhia, e o quinto, de desempate, pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Mas como se deve reputar a validade desta cláusula? As leis que aprovam os contratos de concessão dão força a tudo quanto nelas se tenha convencionado. O contrato que agora se tem oportunidade de analisar foi aprovado por decreto assinado pela Regente e pelo Ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros, publicado no Diário do Governo n.º 271, de 29 de Novembro de 1902, e a jurisprudência que naquele tempo se fixou admitia a aprovação por decreto com força de lei, que não cause reparo algum. Fora destas hipóteses, reputa-se por nula tal estipulação.

O que fundamentava no deambular de Novecentos a apreciação pelas instâncias administrativas era a conveniência de um julgamento rápido, mas poucas décadas mais tarde, na vigência do regime republicano, a competência justificava-se pela tutelado serviço público, quer sobre o seu funcionamento quer sobre a sua execução, qualquer que fosse o regime de exploração, por influência da jurisprudência do Conseil d’État (arrêt Terrier, decisão Feutry, et alia).

Como se definia então o serviço público, critério para a qualificação da concessão? Segundo Louis Rolland, o autor das leis sobre esta matéria em França, quando, tornados os interesses em necessidades gerais e permanentes (...) já não podem ser contentadas pela actividade particular.

Dada a inexistência de um regime, os elementos para que houvéssemos considerado estar perante um serviço públicoseriam regularidade e continuidade, actualidade e destino público. Pelo primeiro, visava-se a satisfação de necessidades colectivas e do interesse do público, por natureza, contínuo, e tendencialmente com crescente expectativa dos cidadãos (O Governo reconhecia como da máxima importância a construção da linha férrea (...), como se acha na representação que se fez à Regente); actualidade, ou seja, adequação da execução do serviço mediante as variações ocasionais, o oposto do mote ne varietur, e destino público, ou seja, a organização em função do público, porque a ninguém pode em geral recusar-se o seu aproveitamento. A propósito da actualidade, muitos contratos estabeleciam a obrigação do concessionário ao aperfeiçoamento progressivo nas condições de funcionamento, o que o contrato em análise estabelece no seu artigo 11º (Obrigações Gerais da Companhia Concessionária).

O concessionário e a companhia (...) obrigam-se a efectuar (...)
2º O fornecimento, assentamento, conservação e renovação da via corrente e todos os acessórios (...)

As concessões de obras públicas da segunda metade do século XIX pretendiam produzir melhoramentos materiais, como caminhos-de-ferro ou similares, iluminação a gás, cais ou pontes, acarretando uma operação administrativa. Por esse motivo, o modelo adoptado foi o de (I) o particular se aventurar a assumir os encargos da sua execução, ficando com o direito de, como gestor, pelo tempo acordado receber certas taxas, contra-partida da utilização do bem, assumir os riscos da obra, e de (II) o cedente, o Estado português, delegar alguns direitos de domínio público. Expressão desta realidade é o clausulado que se salienta em seguida.

(I) Qual a carta de direitos que ao concessionário, a CCFB, eram atribuídos?

Como preceitua o artigo 3º do mencionado contrato,

A companhia concessionária poderá emitir obrigações nos termos das leis portuguesas e deste contrato.
(...)
A emissão far-se-á sucessivamente mediante prévia aprovação do Governo (...).

Artigo 4º - Concessões
O Governo concede mais à companhia:
1.º O direito de, durante os primeiros dez anos da concessão, pesquisar e explorar todos os jazigos mineiros que não estiverem manifestados ou demarcados à data do presente contrato, em uma área de terreno do Estado de 120 quilómetros para cada lado da linha férrea (...);
2º O aproveitamento de madeiras que houver nas matas e florestas do Estado (...) para construção e a exploração do caminho de ferro;
3º O direito de construir, junto às estações (...) hotéis, restaurantes ou quaisquer estabelecimentos comerciais;
(...)
11º O uso de todos os terrenos do Estado que forem necessários para a construção e exploração da linha férrea (...)


Artigo 9º - Danos e prejuízos
O Estado não é responsável, não lhe podendo por isso ser exigida indemnização alguma, pelos danos no caminho de ferro e material ou nas minas, por prejuízo na exploração (...)

Artigo 11º - Obrigações gerais da Companhia concessionária
O concessionário e a companhia que formar obrigam-se a efectuar à sua custa, e por sua conta e risco, nos termos, pelo modo e nos prazos estipulados neste contrato.

(II) Respeitante às obrigações do concedente, como preceitua o artigo 1º do mencionado contrato,
O governo concede a Robert Williams e à companhia que ele formar, nos termos e segundo as clausulas do presente contrato, o direito de construir e explorar um caminho de ferro (...)

Artigo 10º - Construção eventual de novas linhas férreas
O Governo não poderá, durante o prazo de concessão, construir ou conceder, em uma faixa de terreno de 50 quilómetros de largura para cada lado da linha concedida, nenhum outro caminho de ferro em direcção paralela.

A concessão desta natureza, mais do que naturalmente civil, revestia-se igualmente de prerrogativas de poder público, como a possibilidade de expropriação por utilidade pública ou polícia de fiscalização, concessões de ocupação, facto que assim justificava um contrato essencialmente administrativo.

Artigo 4º - Concessões
11º (...) autorização para judicialmente, (...) fazer a expropriação, por utilidade pública, dos terrenos de particulares que forem reconhecidos necessários (...)

No entanto, era assegurado, pela parte do concedente, a fiscalização da exploração das linhas ferroviárias.

Artigo 24º - Fiscalização do Governo
A execução de todas as obras do caminho de ferro concedido, o fornecimento, colocação e emprego do seu material fixo e circulante ficam sujeitos à fiscalização dos engenheiros e mais pessoal que o Governo nomear para esse fim.

Artigo 42º - Fiscalização do Governo
O Governo terá o direito de fiscalizar por meio dos seus agentes a exploração da linha férrea durante o tempo de concessão,

bem como ficava a companhia (artigo 2º) (...) organizada segundo as leis portuguesas, sujeita às leis e aos tribunais portugueses; terá a sua sede em Lisboa, devendo ser portugueses o seu principal gerente em Lisboa e o seu representante em África.
Do seu conselho de administração farão sempre parte três administradores livremente nomeados pelo Governo.
Junto da companhia haverá um comissário do Governo (...).

Em termos de competência internacional, pelo 59º, Robert Williams declarava sujeitar-se às leis e aos tribunais portugueses, e renunciar ao seu foro nacional, tomando Lisboa para seu domicílio.

Quanto à natureza jurídica do contrato de concessão, várias dificuldades existiam porquanto o seu regime não se encontrava consignado em lei geral, mas a sua regulação e regime surgia do próprio figurino do clausulado do contrato, que se considerava inominado e autónomo. A concessão caracterizava-se pelo duplo aspecto do tipo lei-convenção; de uma parte, a estabilidade ou inalterabilidade das condições da situação particular criada pela concessão, geralmente através do caderno de encargos, de outra, a possibilidade de modificações das condições do funcionamento do serviço. 

Muitas concessões foram atribuídas, como as que se materializaram na constituição da Companhia das Agoas de Lisboa, da Anglo-Portuguese Telephone Company, da Empreza Nacional de Navegação a Vapor para a Africa Portugueza, da Companhia de Ambaca,ou da Mala Real Portugueza, para mencionar as de maior nomeada.

Em suma, podemos considerar este contrato de concessão de serviços públicos como paradigmático do modo como se entendia a realidade administrativa de então. Perante as águas paludosas do contencioso, parece-nos que embora as concepções apresentadas por autores vários no sentido de uma unificação sob o paradigma da apreciação dos contratos de concessão pelo contencioso administrativo, a falta de regulação geral da matéria conduziu a desvios vários como largamente houve oportunidade de demonstrar.


Bibliografia
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Lisboa, 2016.
Companhia do Caminho de Ferro de Benguela, Contrato de Concessão e Estatutos, Lisboa, s.d.
Caminho de Ferro de Benguela, Lobito – a mais curta estrada para a África Central, s.d.
José d’ Almada, Para a história do Caminho de Ferro de Benguela, Lisboa, 1941.
João Maria Tello de Magalhães Collaço, Concessões de Serviços Públicos, Coimbra, 1914.
Maria João Estorninho, Requiem pelo Contencioso Administrativo, Coimbra, 2003.
Marcello Caetano, A Codificação Administrativa em Portugal, Lisboa, 1935.
Diário do Governo, número 133, de 17 de Junho de 1909.


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