quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Providências Cautelares — Parte I. Uma Breve Explicação

PROVIDÊNCIAS CAUTELARES — PARTE I. UMA BREVE EXPLICAÇÃO

Até à Reforma 2002-2004, a única providência cautelar que o Código de Processo nos Tribunais Administrativos previa era a da suspensão da eficácia do ato administrativo. Para um sistema administrativo que se alicerça no privilégio da execução prévia, que corresponde ao princípio geral da imediata executoridade de todos os atos administrativos, admitir que um tribunal pudesse paralisar esta força imperativa e mantê-la suspensa até ao término da ação principal, constituía uma afronta para o sistema português (que, desde logo, seguia o modelo francês). Para além desta não existia mais nenhuma providência cautelar prevista na lei.

Nos dias de hoje, após Portugal ter sido condenado (e bem) e de a doutrina portuguesa ter começado a afirmar o alargamento da providências cautelares (incluindo até as providências nominadas do processo civil), temos direito a tudo! O legislador não esqueceu nenhuma modalidade (arts. 112º e ss.). Dos arts. 128º e ss. constam as providências tipicamente administrativas. De notar, a título de curiosidade que, também neste campo, evoluímos de um contencioso de mera anulação para um contencioso de plena jurisdição, que inclui nas suas mais-valias uma grande variedade de providências cautelares. Aliás, para além de uma cláusula aberta, o legislador estabeleceu a título exemplificativo uma série de mecanismos, o que nos leva a constatar que há uma abertura até maior do que no processo civil.

Os processos cautelares são processos especiais e urgentes. Especiais, porque não se reconduzem nem à ação administrativa comum, nem à ação administrativa especial. Urgentes, porque “correm mesmo em férias” (artigo 36º/1/f)). 
A finalidade típica das providências acautelares é a de assegurar o efeito útil da decisão principal (art. 2º/1 e nº2 al. q)) — ou seja, assegurar, através de medidas antecipatórias ou conservatórias, que a decisão final do processo principal não se torne inútil na sua aplicabilidade e seja destituída de sentido — ainda, artigos 3º/3 e 9º/2. 
Todas as providências cautelares são necessariamente dependentes de um processo principal, o que não pode significar que tenham ser requeridas em momento subsequente ao processo principal ou simultaneamente com ele (art. 114º/1).

Processo de suspensão de eficácia

Quanto ao processo de suspensão da eficácia de um ato administrativo não há grandes alterações a comentar comparativamente ao regime anterior. As duas principais novidades introduzidas foram a (1) possibilidade de o interessado requerer a declaração de ineficácia dos atos de execução indevida (art. 128º/4); (2) a possibilidade de pedir a suspensão de um ato já plenamente executado (art. 129º).
Quanto à primeira situação, o professor Vasco Pereira da Silva classifica-a uma decisão antiga que se mantém em vigor desnecessariamente. Desde logo, o nº 1 do artigo 128º, parece dar a entender uma automaticidade do impedimento para a Administração Pública de executar, o que só por si causa alguma estranheza. Mas tudo piora no nº 2, em que se reconhece a possibilidade para a Administração de prosseguir com a execução se entender que o diferimento será gravemente prejudicial. Significa isto que o réu pode decidir que executa? Ora, não será isto o mesmo que permitir a um arguido decidir se acata uma decisão de prisão preventiva no âmbito do direito penal? Esta norma põe de facto em causa o princípio da tutela efetiva plasmado na Constituição, uma vez que se irá discutir no pré-processo a decisão e só no fim decidir sobre a providência cautelar. Este não corresponde ao verdadeiro objetivo da providência cautelar prevista porque este processo acabará por se  tornar contraditoriamente moroso, o que tem já levado o Estado português a ser condenado. 
Quanto à segunda situação, o professor Freitas do Amaral defende a aplicação do regime relativo ao preterição por parte da Administração de uma decisão judicial no domínio do processo executivo relativo às inexecuções ilícitas. Defende a aplicação do artigo 169º, o qual dispõe acerca da medida de sanção pecuniária compulsória. No caso a subsumir a esta norma, o prazo iniciará a sua contagem a partir do momento em que a declaração de ineficácia dos atos de execução indevida seja requerida ao tribunal e este a decrete. O referido professor qualifica a aplicação da norma do artigo 169º como uma “arma atómica, em matéria de dissuasão da Administração Pública quanto aos seus apetites de inexecução de sentenças”.

Algumas providências cautelares em especial, comentários

Artigo 130º (suspensão de eficácia de normas)
Consideram-se abrangidos os regulamentos ou outras normas como portarias, despacho normativos, circulares, etc. Portanto são, lato sensu, os regulamentos administrativos (todas as normas emanadas por órgãos administrativos no uso da sua competência legal). Há duas modalidades: (1) pedido de suspensão de norma pelo interessado com efeitos circunscritos ao seu caso pessoal; (2) pedido pelo interessado ou pelo MP de suspensão com eficácia geral dos efeitos de qualquer norma considerada ilegal em três casos concretos por qualquer tribunal.

Art. 132º (providências cautelares relativas a procedimentos de formação de contratos)
Contratos não apenas administrativos mas quaisquer contratos que a Administração celebre com outrem, nomeadamente com particulares. Estes são quase todos precedidos de um procedimento administrativo pré-contratual.

Art. 133º (regulação provisória do pagamento de quantias)
Não se aplica a todas as quantias que sejam devidas, mas aquelas que sejam necessárias para evitar a situação de carência económica.

Art. 134º (produção antecipada de prova)
Esta é uma providência cautelar tradicional.

Depois, no art. 112º estão outras providências cautelares não especialmente reguladas mas que vêm enunciadas sem regulamentação especial no nº2

Al. b) (admissão provisória em concursos e exames) 
O professor Freitas do Amaral considera esta inovação de grande importância porque protege de uma maneira eficazmente os interesses legítimos dos que se considerem com direito a participar no concurso ou exame mas não paralisa o funcionamento da Administração Pública. Dizer que a providência cautelar suspenderia todo o processo do concurso ou do exame até que decidida iria prejudicar o funcionamento regular e contínuo da Administração. Por isso, se seria vantajoso para o particular, seria desvantajoso para a Administração (“para toda a comunidade”, nas palavras do professor). Portanto, ou se verifica, por parte do tribunal, que essa pessoa tem mesmo direito a participar no concurso ou no exame e a admissão provisória converte-se em definitiva; ou o tribunal verifica que essa pessoa não tinha o direito, e nesse momento a pessoa é afastada do concurso, ou é anulada a prova de exame. O professor Freitas de Amaral acrescenta, dizendo que este é “um dos casos mais felizes em que se consegue conciliar, de uma maneira bastante harmoniosa, os interesses do particular em não ficar de fora do concurso ou do exame com os interesses públicos em não adiar por dias ou semanas, para não falar em meses, a realização do concurso ou de exame”.

Al. c) (atribuição provisória da disponibilidade de um bem). 
Aqui o particular tem direito a obter um determinado bem da Administração Pública, ou por devolução de algo que já lhe pertencia — objeto apreendido ilegalmente, por ex. —, ou por atribuição ex novo de algo a que tem direito mas que ainda não possui. 

Al. d) (autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma atividade ou adotar uma conduta) 
Exemplificando: o particular pediu uma licença a uma autoridade administrativa mas esta demora e ele precisa de começar a realizar aquilo que pretende realizar.

Al. e) (regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição à Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas, ou a título de reparação provisória) 
Há aqui que distinguir duas hipóteses: (1) o particular tem direito a receber uma quantia em dinheiro e a Administração não lhe paga; (2) o particular tem direito a uma reparação, designadamente por indemnização de perdas e danos ou por qualquer outro título legítimo, e a Administração não paga. Parece também muito importante e útil para os casos de dívidas que as entidades administrativas têm para com os particulares e que vão adiando. Se o particular puder provar que isto lhe faz falta ou lhe causa um prejuízo relevante, então a providência cautelar pode impor à Administração que faça um pagamento por conta, um pagamento adiantado da totalidade, ou pelo menos de uma parte daquilo que o particular alega ser-lhe devido.

Al. i): in cauda venenum — na cauda da serpente é que está o veneno. Este é o preceito mais polémico e controverso de todo o capítulo sobre providências cautelares, nas palavras do autor. A analisar na Parte II.

Bibliografia:
Apontamentos das aulas do professor Vasco Pereira da Silva, na disciplina de Contencioso Administrativo, 2018
Artigos, Cadernos de Justiça Administrativa, nº43, Diogo Freitas do Amaral

Filipa Matos, nº 140114034



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